O meu tio Germano voltou da Guiné ferido de morte. Da mesma Guiné onde Salgueiro Maia ficara ferido, já antes dele. Era um rapaz bonito, o meu tio. O penúltimo dos 13 filhos da minha avó Maria, olho azul, como os outros, cabelo ondulado, a vida toda pela frente quando embarcou naquele navio – e de onde nunca regressou, verdadeiramente.
Voltou da Guiné sem feridas visíveis, por fora. De tal forma o corpo parecia são que ingressou nas fileiras da Guarda Fiscal. Na verdade, haveria de passar mais tempo internado na psiquiatria de um hospital militar do que em operações de fiscalização, que não as de fantasmas que atravessaram o oceano dentro dele. Esse retorno à aldeia (de onde partiram tantos outros rapazes) fez-se pouco antes daquela noite, há 40 anos. Nessa altura, vários irmãos (entre eles o meu pai, que teve a sorte de atravessar a guerra numa farda de marinheiro, a menos má da tropa) já tinham trocado os campos de milho da Moita do Boi pelos bairros ajardinados de uma cidade alemã.
A essa hora, enquanto o meu tio Germano tentava enterrar de vez os mortos que trouxe da Guiné, eu dormia descansada o sono de ano e meio de gente, no mesmo quarto onde a minha mãe pedalava o dia inteiro numa velha Singer, de cabeça verde. Escapou, com esse talento da costura, ao destino das irmãs, criadas de servir em casa de senhores de Leiria e arredores. Algumas (e alguns, num total de 10) ajudou ela mesma a nascer, na esteira onde dormia, com a minha avó. Correu quase sempre tudo bem, à excepção da penúltima, que morreu com um mês de vida, sem nunca se saber de quê, enquanto o meu avô amealhava francos nas obras e à noite fechava os olhos num bairro de lata dos arredores de Paris.
Para lá chegar, foi um tormento. Daqueles que fazem parte de uma infindável lista que hoje há quem queira branquear, como se nunca tivesse existido. Primeiro foi preciso arranjar um “passador”, a quem pagou e bem, o meu avô Zé Maria, já então cego de uma vista, por não ter recebido assistência médica atempada depois de um acidente de trabalho. Depois foi o calvário de que não gostava de falar: quatro dias em Espanha, sem nada para comer, até se verem obrigados a mastigar os canoilos do milho e os restos do trigo. A França renascida em betão no pós-guerra fê-lo quase esquecer, em dinheiro, aquilo que a alma guardou bem fundo. Não podia ele imaginar que seria o primeiro de várias gerações da família a povoar as vilas e cidades francesas, numa saga da emigração que conhece, por estes dias, o seu apogeu. Por toda a parte, pelo mundo inteiro. Nessa altura, nessa noite de há 40 anos, ele já dormia numa cama a sério, ao lado da minha avó. Deixara em França três filhos, um deles desertor. A ousadia valeu-lhe ficar 13 anos sem voltar à terra nem aos seus.
Na verdade, dormíamos todos mais ou menos descansados aqui pelo litoral à hora em que os militares seguiam para Lisboa e o país acordava. Nos anos seguintes, o rádio ainda passava a canção da “gaivota”, que eu cantarolava desde que me lembro. Passava a Grândola, a marcha do MFA, e era um dia festivo, em que a minha mãe simbolicamente não se sentava à máquina para trabalhar. Explicava-me, à maneira dela, que estávamos a festejar muita coisa, mas sobretudo a liberdade.
- sabes que antes disso não podíamos dizer mal daqueles senhores do Governo. Aliás, se estivéssemos ali no café a falar num grupo, podiam vir os homens da Pide e levavam-nos presos.
De tal maneira que eu cresci com a ideia de que, se fizesse ou dissesse asneiras, ia presa.
Nunca fui. Nasci em ditadura mas cresci em liberdade. Desde muito nova tive sempre uma imensa pena de não ter nascido uns anos antes para poder viver em pleno aquela madrugada, aquela revolução. Contá-la em reportagem, no mais perfeito dos cenários. Emociono-me com as histórias dos capitães, com o relato dos camaradas da época, como aconteceu ainda na semana passada ali na Arquivo, na apresentação do livro Os Rapazes dos Tanques, de Adelino Gomes e Alfredo Cunha.
Por causa dessa história que é a da minha família, mas também a do meu país, sou eternamente grata àqueles rapazes todos. E mesmo sem ter vivido em ditadura, senti-lhe os efeitos secundários, que aqui ficam lavrados: a guerra, a censura, a mortalidade infantil, a ausência de um Serviço Nacional de Saúde. E as feridas invisíveis, como as do meu tio Germano, que um dia, no Verão de 77, acabou com aquele sofrimento todo no fundo de um poço, lá no quintal da minha avó. Foi o Ultramar que o matou. E isso nunca se pode perdoar a regime nenhum. Da mesma maneira que nunca poderemos perdoar a cada um de nós aquilo que estamos a fazer à democracia, menosprezando-a, demitindo-nos do papel de cidadãos em toda a linha, sem perceber que um dia a coisa se pode inverter: quem adormece em liberdade, acorda em ditadura.
Viva o 25 de Abril!
Viva a Liberdade!
Nota: Este texto foi escrito originalmente para a Preguiça Magazine, onde à quinta-feira escrevo "O Barulho das Luzes". Não tenho por hábito publicar no Farpas textos que faça para outras publicações, sobretudo por não ser esse o espírito da casa. Mas esta minha história é a de muitos de vós. E é preciso contá-la, tantas vezes quantas forem precisas.