No princípio do verão de 1987, o meu pai chegou a casa com uma indicação de agenda, para uma tarde na Associação da Moita do Boi. Constava que deixaria de haver transporte para a Guia, a escola transformada em C+S depois do 25 de Abril, antigo externato privado. Além disso estava a nascer no Louriçal "um colégio novo" - que oferecia transporte, claro - e um dos sócios dispusera-se a explicar, detalhadamente a cada família, o projecto no seu todo. Lá fomos. Nunca me esquecerei da imagem de António Calvete, à época rapaz de sub-30, camisa e calça de ganga, sapatilhas, óculos redondos e olhar certeiro. Estava sentado sozinho, numa mesa ao cimo daquele salão de baile. Falava pausadamente, discurso estudado e fluente, abusava da bengala de linguagem "no fundo", e no fundo eu sabia que de pouco adiantava dizer ao meu pai que não queria estudar no Louriçal, que ninguém queria passar os dias na vila, que vivia há anos na sombra do foral manuelino e do convento, mais o mercado ao domingo. Estava escrito nas estrelas, e lá fui, meses depois, para o primeiro 9º ano da vida do Instituto D. João V: 300 pessoas ao todo, entre alunos, funcionários e professores. 50 professores. A nata da nata que havia em Pombal e Figueira da Foz.
Naqueles primeiros tempos da escola fomos todos muito felizes. A vila ganhou uma vida que não tinha, a comunidade assistiu a uma explosão cultural que nunca conhecera. Era a feira medieval, eram as semanas culturais, os desfiles de carnaval, as marchas populares, o concurso dos vestidos de chita e mais tarde os festivais da canção. Funcionávamos como uma grande família, que à hora de almoço se reunia na cantina para comer uma sopa - que a D. São fazia em casa, ali a poucos metros, e trazia à cabeça, dentro da panela. Pouco tempo depois, já ninguém tinha saudades da Guia, ou do Paião, de Pombal ou da Figueira. Estava criado um ecossistema de afectos, que haveria de nos ligar para sempre, a muitos de nós. Muito do que sou devo-o ao Instituto D. João V e não me esqueço disso: quando escolhi a variante de jornalismo/turismo da área que se chamava Humanísticas, a escola fê-lo para quatro alunas. Outra de nós enveredou pelas Clássicas; a escola mandava vir uma professora exclusivamente para lhe dar aulas de grego, uma vez por semana. Um luxo suportado pelo ensino particular e cooperativo, com dinheiro público. Mas isso eu só haveria de perceber mais tarde. Logo aos primeiros anos estava lançada a fama da escola, de tal modo que, de repente, transferiam-se para o Louriçal não as moças mais lindas do bairro operário, mas as meninas da cidade, que descobriam na vila um sítio muito melhor do que Pombal para estudar. Não tardou muito para se multiplicarem as salas e as turmas. Ao mesmo tempo, o IDJV transformava-se num organizador de eventos ímpar. Já a fama da escola estava cimentada quando demos corpo a uma marcha popular: o João Portulez ensaiou, o Daniel Abrunheiro fez a letra, a banda da Sociedade Filarmónica Louriçalense acompanhou, e lá fomos, Louriçal abaixo, escola acima, a marchar, alunos e professores, o povo a aplaudir. Antes, porém, o Dr. Calvete reuniu os marchantes, no final de um ensaio. Tratava-se de convencer a todos e a cada um comprar uma t-shirt com a marca da escola, coisa para custar mil escudos, pois que vestir a camisola deveria ser um orgulho. Aquilo não me soou bem. Cá atrás, levantei o dedo e disse-lhe o que pensava: não me parecia normal passarmos semanas ali, depois das aulas, nos necessários ensaios, dar tempo e trabalho a uma iniciativa da escola, e ainda pagar por isso. Instalou-se a confusão e acabámos por marchar de camisa branca, cada um com a que tinha. Foi uma grande festa, aquela, dos santos populares de 1991: marchas populares, um arraial na escola, um desfile de vestidos de chita, um baile abrilhantado pelo conjunto musical "Carapaus de Prata", a prata da casa. Aquele era "o elenco do Instituto", como dizia o patrão dos colégios. Em troca, sorrisos, tiras de presunto e queijo, e um caldo-verde.
Naquele tempo nasciam empresas por toda a parte, Portugal já estava na CEE de corpo e alma, havia dinheiro fresco e abundante. Apareceram os cursos de formação financiada, um novo filão para as escolas como aquela. Nesse jogo da sorte lembro-me do canalizador lá da minha aldeia que se fez professor, assim, à medida dos montantes. Nunca mais soube do que acontecera à escola da Guia, nem às outras. O meu mundo era aquele, e aos 16 ou 17 anos ninguém pensa muito nos modelos de financiamento, contratos de associação e outros demónios.
A escola trouxe gente, a gente precisava de morar ali perto - especialmente os professores. E então nasceram prédios e moradias à medida dessas necessidades. O Louriçal cresceu à sombra do Instituto, e o Instituto ganhou tentáculos noutras áreas de negócio. Era assim o mundo nos anos 90, quando as famílias tinham emprego, trabalho certo e esperança no futuro. Com a garantia de transporte de Pombal para a vila (a que Narciso Mota resistiu o quanto pode, coadjuvado de forma veemente por Diogo Mateus, que nessa altura era crítico do 'sponsor' do PS, António Calvete, como lhe chamava), disparou o número de alunos. Tinham a modalidade de natação nas aulas de educação física, um pavilhão gimnodesportivo para a prática de outras modalidades. Era o tempo do desporto escolar transformado em jogo profissional, equipas na primeira divisão nacional.
Mas o mundo mudou. E no IDJV as mudanças sentiram-se cedo, aos primeiros sinais de recuo financeiro. Acabou-se o basquetebol, o futsal, fechou-se a piscina. Os professores foram dos primeiros a perceber que o tempo era outro, especialmente os casais que se viram no desemprego, com casas para pagar, no mesmo Louriçal para onde se haviam mudado. Nos últimos quatro anos dezenas de professores foram convidados a sair do grupo GPS (que entretanto agrupou vários colégios dos empresários Calvete e Madama). Conheço vários que não voltaram a trabalhar na área, ou que oscilam entre uma ou outra substituição nas escolas públicas. Não são eles que escolhem. Nem os filhos deles.
Na freguesia do Louriçal (como em Albergaria dos Doze, Redinha ou Meirinhas) o milagre não se fez sentir: a natalidade caiu, a emigração aumentou, fecharam empresas, encerraram muitas escolas do ensino básico. Quando passo na aldeia da minha avó, custa-me ver a escola primária de Antões transformada numa sede de rancho folclórico. É melhor do que estar fechada, ao abandono? Claro que sim. Mas lá na terra toda a gente preferia ver o recreio cheio de corridas, macacas e jogo da apanhada. Eu também. No mundo ideal, o Estado não se limitava a pagar aos privados (muito e bem) para o substituírem quando fosse preciso, mas dar-se-ia ao luxo de lhes pagar sempre, independentemente do número de alunos; os negócios seriam um dado adquirido para todo o sempre, sem prazo. Num mundo melhor, não teriam encerrado centenas de jornais neste país, nos últimos anos, nem outras empresas. A pobreza não teria disparado para níveis que doem.
Ora acontece que a realidade é uma desmancha-prazeres, e tem vindo a esvaziar escolas públicas sucessivamente, aquelas que todos pagamos - e onde, apesar dos pesares, se mantêm professores de excelência. A manta é curta. E chegámos aqui, ao momento em que
um governo de esquerda teve a coragem de fazer o que tinha de ser feito, para minimizar os estragos. Como bem escreveu Mariana Mortágua, " O
Estado tem obrigação de ter uma boa rede de ensino público, universal e gratuito. Tem obrigação de, quando essa rede não existe, pagar aos privados para que o façam. MAS não tem obrigação de financiar privados quando há uma escola pública, vazia, ao lado. E isto não é acabar com a liberdade de escolher privado. Quem quiser pode fazê-lo. Não nos podemos meter nas escolhas de terceiros, mas também não temos que as pagar!".
Dantes, o presidente da Câmara de Pombal também pensava assim. Mas foi sem surpresa que o vi nas imagens amplamente difundidas pelo IDJV, em manifesta solidariedade para com aquele privado - ele e três vereadores: dois antigos alunos e um antigo professor.
Aqui por Pombal só não temos a Igreja metida ao barulho, como acontece numa boa parte do ensino privado.
É isto, afinal: "
Como a escolaridade é obrigatória e o nosso Estado é laico, é obrigação do Estado garantir que existe uma escola laica. Um Estado laico não pode obrigar uma família a inscrever as suas crianças em escolas de inspiração católica. A implicação lógica é simples: onde há escola pública, não se deve financiar escolas privadas. A não ser, claro, que o Estado deixe de ser laico, como grande parte da Direita gostaria".
O que me custa? Que em Pombal seja uma parte da esquerda a alinhar nessa onomatopeia.