Ultrapassada a pendência decisiva, no n.º 2 da Rua Luís Torres, com
uma vitória limpa, por unanimidade e em toda a linha (?);
sem dar um único tiro, deixando as despesas da refrega para os licenciados em
leis e os novos fidalgos, e limitando-se a registar alinhamentos e
desalinhamentos; o Príncipe sentia-se, novamente, dominador da situação, pronto
a ditar as regras e os papéis, quando recebeu o Cura e Trovador Vaz.
O Pança recebeu o convidado com a cortesia com que costuma
tratar os superiores, e encaminhou-o ao trono. O Príncipe levantou-se e recebeu
o representante do Senhor na terra com um cumprimento discreto. Sentaram-se.
Principiou assim o Príncipe: - Digníssimo Cura Vaz;
reconhecerá, com certeza, que tenho sido generoso com a Igreja que dirige,
brindando-a com avultados recursos materiais para que possais cumprir a vossa missão
nesta terra: manter o rebanho junto e manso.
- Concordo Majestade; – anuiu o Cura – mas não imaginai Sua
Majestade o esforço que tenho feito para manter a harmonia nesta difícil paróquia
e ser fiel à secular aliança entre Estado e Igreja.
- Aí, discordamos – contrapôs o Príncipe, no seu registo
altivo. E foi por isso mesmo que o mandei chamar; para lhe dar nota das falhas
e do que espero de Vossa Mercê neste período crítico.
- A Igreja está sempre aberta a assumir as suas falhas;
somos servos do Senhor e, também, de Sua Majestade.
- Então dizei-me, Cura Vaz: acha que eu, que herdei um
principado pacificado e obediente, posso estar satisfeito com tanta ovelha
tresmalhada (algumas já regressaram), tanta intriga, tanta divisão e com
rebeliões, até? - questionou o Príncipe meio exaltado.
- Compreendo a vossa revolta, – anuiu o Cura – mas compreendais,
com certeza, que um pastor, por mais atencioso e apaziguador que seja,
dificilmente consegue manter o rebanho junto e em harmonia, quando no
principado reina uma luta fratricida.
- Mas é nestes momentos que os representantes do Senhor na
terra são necessários – exclamou o Príncipe. Para os momentos de normalidade
não precisamos de dotes divinos, precisamos deles é para superar as
anormalidades.
- O que sei dizer é que, tal como Sua Majestade não consegue
sanar as rebeliões; também a Igreja tem as suas fraquezas; e até o
Nosso-Senhor-Todo-Poderoso é, às vezes, impotente perante as forças do Demónio.
- Dizeis-me, então, que não posso contar com Vossa Mercê
para a minha arriscada empreitada? Perguntou o Príncipe.
- Claro que podeis, Majestade – acudiu logo o Cura e
Trovador Vaz. Se as vossas aflições, angustiado Príncipe, podem esperar algum
remédio das preces de um Cura, aqui estou eu, que todo me empregarei no vosso
serviço. Mas conto, também, com a recompensa de Sua Majestade, para despachar
as minhas trovas.
- Isso não é problema, se Vossa Mercê fizer bem a sua parte
– atirou logo o Príncipe.
- Com todo o grado o faço, Majestade – anuiu o Cura. Desde
que Vossa Excelência façais também a vossa outra parte. Lembrai-vos: se souberdes
ter manha, podeis com as riquezas da terra granjear as do céu. Mas primeiramente
há que temer a Deus, porque no temor de Deus está a chave do céu. Aconselho Vossa
Excelência a passardes pela confissão, que, seguida de uma contrição sentida e
de uma boa penitência, limpareis a alma e entrareis na graça de Deus – condição
necessária para obterdes a confiança dos vassalos e o respeito dos súbditos.
- O meu estatuto não permite que seja confessado por um
simples Cura; mas tenho recorrido ao nosso Reverendíssimo Bispo.
- Estais em boas mãos, - anuiu o Cura e Trovador Vaz. Mas
talvez o nosso Reverendíssimo Bispo não conheça suficientemente Vossa Alteza. Por
isso, convinha, também, que olhásseis quem sois, para vos conhecerdes bem, e descartásseis
algumas baixezas que tendes à mistura com as vossas grandiosidades. Teríeis
melhor vindouro se fordes um virtuoso humilde e não um fidalgo vicioso em que Vossa
Excelência se tornou.
- E Vossa Mercê deveria rejeitar certas mundanices que tem a
mistura com as suas muitas virtudes – atirou o Príncipe. Ou acha Vossa Mercê que
a minha dinastia permite que me misture com a Trampa que abunda neste reino?
- Vossa Senhoria está de uma maneira que nem Satanás o
atura! Ámen.
Miguel Saavedra
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