29 de abril de 2019

A cultura de elite, ou o sectarismo estratégico



O fim de semana que passou foi uma pedrada no charco dada pelo festival Oh da Praça. Durante dois dias (sexta e sábado) a música, a dança, a fotografia, e todo um conjunto de arte(s) tomou conta da cidade, com maior expressão na noite de sábado, que encheu o Jardim. 
Ao longo desses dois dias a Câmara fez questão de ignorar olimpicamente o evento: não há uma única referência nem fotografia na página do Município, o que quer dizer que a presença fugaz dos vereadores Pedro Brilhante (na noite de sexta) e Ana Cabral (no sábado à tarde) foi-o, muito provavelmente, a título pessoal. Não há notícia da presença da vereadora da Cultura em nenhum dos momentos.
Mas ontem, Ana Gonçalves integrou a "delegação do Município de Pombal" - como lhe chamou o deputado do PSD, eleito pela Europa, Carlos Gonçalves - que foi à capital apadrinhar o lançamento do livro de uma ilustre desconhecida (Maria Lourenço, natural de Almagreira), pela Chiado editora. Não sei se os leitores sabem como é fácil editar um livro por ali: basta pagá-lo.
A "escritora" em causa é emigrante na Suíça, e o lançamento decorreu em Lisboa. Foi confrangedor assistir à presença em peso da Câmara, por comparação à estratégica ausência num festival artístico que decorreu aqui na terra, e que - sabe-se agora - poderia ter sido a comemoração do 25 de Abril. Mas a Câmara não quis.
De que tem medo Diogo Mateus? De que foge a vereadora da Cultura? De Pombal? 
Por último, não deixa de ser interessante este súbito interesse pelos livros e pelos autores. Em Novembro deste ano, quando entrevistei a escritora desta terra de maior vulto e obra publicada, enviei pessoalmente uma mensagem ao presidente da Câmara, dando-lhe conta da vontade que ela tem em doar a uma entidade pública (ao município, por exemplo) toda a sua vasta biblioteca. O silêncio do edil foi ensurdecedor. Tanto quanto estridente foi a presença dos três vereadores na apresentação daquela obra, ontem. Está comprovada a questão de prioridades por parte do poder autárquico aqui na terra; resta ao povo - que ainda vota - dar-lhe resposta adequada quando for chamado a pronunciar-se. Oxalá tenha por onde escolher. 

28 de abril de 2019

Incúria total

A CMP construiu, ou mandou construir, e pagou, um parque infantil, na periferia de Albergaria dos Doze, que deixou ao total abandono (e talvez nunca tenha sido verdadeiramente usado), junto a uma suposta ETAR que nunca funcionou.
Ao lado, pagou a construção de um suposto parque de aventura e lazer que foi deixado ao abandono e tomado pelas silvas.
Entretanto, decidiu derreter mais 179.973 € naqueles equipamentos, que, pelos vistos, ninguém deseja nem reclama.
Este caso é, só por si, grave, pelo que demonstra do nível da incapacidade de gestão desta câmara. Mas o problema maior é que este caso não é excepção, é a regra.
Bem pode a câmara apregoar prémios, bandeiras e lugares de destaque nos anuários de investimento das autarquias; a realidade, por cá, fala mais alto.
Bem podem os vendedores de banha-da-cobra, os charlatões, os narcisos desta terra, apregoar que as câmaras com 1% geram 30% da riqueza nacional. A realidade é o que é.


27 de abril de 2019

A liberdade está a passar por aqui?

A realidade é sempre mais criativa do que podemos supor. Mostrou-o mais uma vez ontem à noite, no Celeiro do Marquês - um dos lugares a que o Festival Oh Da Praça também dá vida.
Um dos convidados - Luís Travassos - acabou por trazer a Pombal a comemoração de Abril que o poder autárquico insiste em camuflar: o presidente da Câmara cumpre os mínimos, preferencialmente sem cravos, o presidente da Junta aproveitou a proximidade com o deputado da nação e levou todos os funcionários a Lisboa, para assistirem a uma sessão como deve ser. 
De modo que foi uma felicidade assistir àquele final do espectáculo de Luís Travassos, que escolheu Zeca Afonso e Carlos Puebla para encerrar, lembrando Abril. Não sei se o rapaz saberia a terra em que estava. Mas foi bonito de ver os nossos autarcas a entoar "hasta siempre, comandante", em memória de Che Guevara. Ainda tenho dúvidas se o perceberam, o que torna tudo muito mais divertido...
Afunilando a questão, como se fosse o megafone que Vasco Faleiro usa para anunciar os espectáculos, é importante reter estes dias do festival Oh da Praça, cuja organização é assinada pela Junta de Freguesia. Era escusado. Bastava que entregasse o evento aos artistas Leonel Mendrix, Calika e Faleiro, que se esmeraram por programar dois dias de festival que bem poderiam ser, em si, a comemoração do 25 de Abril. A Junta não tem que ser uma comissão de festas, basta que cumpra o papel de as apoiar e incentivar. E com isso talvez a Câmara acedesse a fazer alguma divulgação do evento (que diz que apoia, pelo menos no cartaz), como faz de tudo o que é festival de sopas, mas a música...ainda por cima se tiver a chancela da junta...é concorrência.
O festival é uma excelente iniciativa, um palco para muitos artistas locais. Merece todo o apoio, e terá tanto mais valor quanto mais independente. Já parávamos com esta mania de 'institucionalizar' tudo, não?
Agora vamos lá para a rua, que o tempo promete e a música chama!



O que disse Inês Gonçalves no jantar do Farpas

“Era uma vez um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tornavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: É meu o inferno, é meu o paraíso. E não devemos malquerer as mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom”.
Estas palavras não são minhas. Quem me dera que assim fosse. São do poeta Herberto Helder e podem encontrá-las no livro “Os passos em volta”.
E escolhi começar com estas palavras porque elas nos remetem diretamente para uma componente que por desleixo, habituação ou interesses acaba por ser deixada de lado na política: falo das pessoas.
Eu não sou poeta e por isso não sei descrever de forma tão bonita o quotidiano das pessoas. Por isso, quando me convidaram para vir aqui falar eu avisei imediatamente que neste momento podia apenas falar no papel que tenho desempenhado nos últimos anos: o papel de desertora. Nasci e cresci em Pombal mas há 6 anos que não vivo aqui. Não penso voltar porque acho que o mundo é grande e eu ainda vi tão pouco. Mas ao mesmo tempo tenho visto muito e também por isso me dói mais,  cada vez que volto.
Dói-me vir à cidade e ver as ruas vazias.
Ver que os únicos lugares que ainda têm movimento são frequentados principalmente por população envelhecida.
Dói-me falar com gente da minha idade que resolveu regressar ou nunca ir embora e ouvi-los dizer que “Não esta cá ninguém”.
Entre a crise, a emigração e busca de melhores oportunidades em outras cidades do país fomos ficando sem gente. Mas como resposta política não vimos nem medidas que procurem fazer regressar essa gente à terra, nem medidas que melhorem a vida dos que cá escolhem ficar. Bem sei que iniciativas microescópicas têm sido lançadas para freguês ver. O dia disto, o evento daquilo, vai foto no Facebook e mais uma capa do Jornal cá da terra.
Floreamos, floreamos e fugimos ao cerne da questão: o concelho precisa urgentemente de investimento de maior escala. É certo que esse tipo de investimento não se encontra debaixo das pedras. No entanto, tenho trabalhado muito na área e se há coisa que sei é que em muitos raros casos nos vem bater a porta a perguntar “É neste concelho que querem que instale o meu negócio?”. E nisto já vamos tarde. Que muitos concelhos, até mesmo com a mesma cor política que o nosso,  já se adiantaram e já andam por aí a mostrar os seus diferenciadores.
Há pacotes de medidas que devem ser criados mas mais que isso devem ser publicitados nos locais corretos.
O problema é que para isso acontecer tem que existir uma estratégia de crescimento económico para o concelho. E para isso há algumas perguntas que tem que ser feitas:
O quê: Em que áreas queremos e temos potencial de crescimento?
Qual é o nosso diferenciador?
Como? Apoiando as empresas que já existem? Procurando novo investimento? Temos que qualificar a mão de obra existente dando mais bolsas de estudo para o ensino superior, e profissional? Temos que buscar nova mão de obra qualificada? Temos que alinhar a criação de cursos profissionais nas escolas a essa nova oferta?
 Quem?: temos que determinar que actores serão parte da estratégia para garantir uma implementação rápida e eficaz.
Onde?: a mim não me incomodaria nada que a comitiva internacional que recentemente andou a distribuir a selfie e o beijinho por terras francesas, aproveitasse por exemplo este tipo de viagens para fins de maior impacto para o concelho.

Temos que definir urgentemente onde queremos ir e como queremos chegar.
Porque o que eu vejo cada vez que venho a cidade é um concelho sem rumo para as suas gentes: líderes e oposição que vão lançando uns projectos, mais umas obras, mais umas requalificações, mais betão. Mas pouco pensamento estratégico que faça com o que o concelho cresça efectivamente. A falta de uma estratégia de gestão é para mim o maior problema dos executivos que têm passado pela câmara nos últimos anos e denota-se de forma transversal em tudo o que metem a mão.
Vejamos alguns pequenos exemplos: considero que temos um concelho bem dotado de infraestruturas - todos nos recordamos da febre dos campos de futebol e associações em tudo quanto é aldeia durante os tempos de Narciso Mota, que hoje pouco são utilizadas pela população. Há escolas primárias fechadas sem destino. Mas vamos ao mais pequeno exemplo: temos uma cafeteria no ponto de maior atração turística do concelho que aos domingos fecha às 6 da tarde.
Um Sistema de transporte que não está desenhado para a população activa e que por isso é ineficiente. É preciso pensar se as rotas estão bem desenhadas, se a determinadas horas deveriam existir conexões diretas de determinados pontos da cidade ao centro. 
Há eventos que se fazem para cumprir calendário: continuamos a festejar o Bodo da mesma maneira há não sei quantos anos, temos aqui bem perto o exemplo de Cantanhede que tem claramente uma estratégia de crescimento para as suas festas, e que todos os anos se bate por fazer melhor que no ano anterior.
Em Pombal, quando há um evento ja nem precisamos de ir porque já sabemos como vai ser: seja bodo, comemoração ao do 25 de abril, feira medieval, inauguração da primavera ou feira de natal: vai ser igual ao ano anterior ou pior. Nunca melhor. E é esse desleixo, essa falta de interesse, esse para quem e’ isto e’ suficiente” que me enerva. Esse desrespeito pelos que vão lutando para ficar por aqui.
E os que ficaram por aqui não estão só no centro da cidade. O concelho vai da serra ao mar como tanto gostam de anunciar e os que ficaram, velhos e novos, estão espalhados pelos 620 km2 de área que temos. Essa gente não precisa só que lhe alcatroem as estradas, depois de muito chorarem.  Precisa de medidas que não os deixem esquecidos.
 Principalmente os mais idosos que são população mais vulnerável e que muitas vezes não tem cá ninguém que os cuide porque os filhos foram embora.
Por último eu queria deixar uma mensagem à população: eu não acredito naquele ditado de cada um tem o que merece porque levamos tantos anos habituados a esta dinâmica que a verdade é que não conhecemos melhor. Mas hoje em dia há lugar para ser mais curioso, para ser mais exigente, para pedir que nos prestem contas, tanto o executivo como a oposição.  Felizmente e fruto do dia que se celebra amanhã,  se foram criando espaços como este, do Farpas. O farpas é um blog mas cada vez mais  também é o único meio de comunicação fiável e também a única oposição sólida que o poder vai encontrando, e que vai sendo uma lufada de ar fresco na comunidade.
 e criando lugar para um debate mais formal e exigente que de outra forma se vai perdendo em lamentos de café, que fazem pouco mais que alimentar o ego de uns quantos.
Herberto dizia que uns vêem o paraíso e os outros o inferno. Sei que chegar ao paraíso de que fala talvez seja uma utopia mas neste momento já me contentava com que fossemos planeando sair do purgatório.
Inês Gonçalves, natural da Ponte de Assamaça,  especialista em marketing digital

O que disse Rui Correia no jantar do Farpas

*convidados do Farpas Pombalinas no jantar-debate do nosso 11º aniversário, sob o tema "Tudo o que se passa no onde vivemos, é em nós que se passa"
"Paul Auster conta-nos em "The invention of solitude" (1982), como foi que sentiu a morte do seu pai. Durante toda a vida, o pai tinha vivido uma vida inteira de ausência e foi mesmo isso o que mais surpreendeu e feriu o escritor; mais do que propriamente aquele inesperado desaparecimento físico:
“Aquilo que me perturbou foi algo diferente, algo que nem se relacionava com a morte ou a minha reacção a ela: foi a consciência de que o meu pai não deixara quaisquer vestígios. Não tinha mulher, nenhuma família dependia dele, ninguém cuja vida fosse alterada pela sua ausência. Um breve momento de choque, talvez, por parte de alguns amigos dispersos, moderada tanto pelo carácter caprichoso da morte como pela morte de um amigo, seguida de um curto período de tristeza, e depois nada.
Eventualmente, seria como se ele nem tivesse vivido alguma vez. Ainda antes da sua morte ele tinha estado ausente, e já há muitos anos que as pessoas que lhe eram mais próximas haviam aceitado esta ausência, considerando-a uma qualidade fundamental da sua existência.”
O escritor decide então recuperar a vida do homem que era o seu pai, uma vida sem vestígios e sem futuro.
Sem mais elaboração, esta imposição de um desaparecimento sem memória, resultou da leitura lenta e repetida deste parágrafo, numa restaurada Ribeira do Porto em frente a um Douro fresco e nocturno, no intervalo de um colóquio científico sobre património, sua conservação e valorização. Nele, muito se falou de "memória" como uma moeda sem valor facial, falou-se da "conservação" como se se tratasse de uma nova e repudiável forma de embalsamamento, peritos chamaram "parques temáticos" às recuperações de centros históricos, defendeu-se a construção em altura, apelidando a outra de "predatória", disse-se o pior do conceito de património imaterial, enfim, um viveiro bem nutrido de gente realmente competente e interessada em pensar.
De um recanto da Universidade do Porto apareceu um professor de filosofia que, do que eu lhe percebi, enquadrou rapidamente o fenómeno do desaparecimento, da supressão ou brevidade da memória, como um elemento inseparável da evolução humana. Depois de todos os desacordos, apenas a ideia de "morte" conseguia unir os patrimonialistas presentes.
Numa época em que tudo parece ser património a preservar, dali resultava, ao menos em efígie, esta perspectiva inesperada de ser necessário rever toda a matéria aprendida nos bancos de escola, para realmente saber o que significa hoje a palavra "património".
A escassez que resulta da amnésia histórica é já hoje por todos sentida, mesmo sem o sabermos. No ofício de historiador a que, por vezes, me entrego, pude já testemunhar que uma única mão incauta, algures numa década passada, pode anular a presença de centenas de vidas; como se não tivessem existido. É quase sempre um livro velho que se destrói, umas caixas velhas com papéis que se queimam, uns arquivos mortos de humidade que vão para o lixo, quase sempre por falta de espaço; gestos anónimos que têm depois poderosa repercussão. Apagam-se registos. Por falta de espaço. Se não temos espaço para todos os registos e tudo é registo, o que deve conservar-se, então? E, sobretudo, conservar para quê, para quem? Definir o que é de conservar não corresponde a uma representação privativa, ou pior ainda: culta, do que deve ser memorável e honorável? E o que resta, tudo o mais, morre?
A morte equivale a um risco de espaço em falta. Nada habita mais uma comunidade do que o seu passado e o assombro da sua precariedade. Todo o futuro, individual e colectivo, depende da relação que se preserve com a memória. Mas qual é a jurisdição da memória?
Quando visitei o hotel da Serreta na ilha Terceira, fi-lo clandestinamente. Uma velha corrente, timidamente proíbe, hoje, a entrada aos menos metediços. O hotel é pequeno, mas robusto. O seu interior encontra-se totalmente vandalizado. Cada passo se faz sobre um mar de vidro espalhado no chão. Já nada resta de mobiliário, a não ser vagas reminiscências de reposteiros aveludados, uns furtivos elevadores enferrujados para içar a comida ao salão e uma enorme lareira de granito altivo. Do edifício, do seu fulgor de anos setenta, sobrevive ainda a sua arquitectura, (moderna e vencida pelo estupro), bem como
uma vista resplandecente sobre o mar, um mar oceânico, atlântico, autêntico. Toda esta decadência não abateu a soberania que ressuma daquelas paredes. Elas escondem histórias. Aqui se reuniram em 15 de Dezembro de 1971, os presidentes Nixon e Georges Pompidou, tendo por anfitrião Marcelo Caetano. Por estes corredores caminhou, acelerada, uma liça presidencial e a voz rouca e arrastada de Henry Kissinger. A visita à ilha marcou também a primeira viagem presidencial do Concorde número 001. Altaneiro, Pompidou organizou uma visita surpresa à sua reluzente e orgulhosa aeronave. Nixon lamentou que os Estados Unidos não integrassem o programa Concorde. “”It’s a big success””, aplaudiu, então. De tudo isto restam notícias e uma fotografia. O hotel vai morrendo, desde então. É uma história por inteirar.
Há uns anos o meu amigo Mário Tavares publicou um livro que, neste contexto gostaria de invocar. É um livro sobre os nove fuzilamentos napoleónicos que tiveram lugar nas Caldas da Rainha em 1808. Mário Tavares é um historiador muito peculiar. É um velho rato de biblioteca, que conhece os cantos à casa, acessíveis apenas a um dono de uma erudição discreta e potente como a sua. O seu livro colocou-me um desafio enternecedor. Gostaria de partilhar alguns dos duelos que este seu livro me colocou. Trata-se de um pequeno livro que representa, em meu entender, tudo o que a grande história deve ser: um resgate e um desconforto.
Em primeiro lugar ele fala-nos de morte. E não me refiro aos fuzilamentos. Refiro-me ao facto muito trivial de se tratar de um testemunho que regressa ao mundo. Este livro é um testemunho ressuscitado. Resgatado da amnésia colectiva. Fora publicado algures no início do século XX e depois desapareceu alhures entre as páginas de um alfarrábio. Um esquife de papel. De nada serve um texto se não houver quem o leia. De nada serve um livro se ninguém o abre. Nesse caso, o autor, vida e obra, morrem. Com a morte de um texto, morre também um testemunho. Com a morte de um testemunho, morrem pessoas, morrem vidas inteiras. Manoel de Sá Mattos, cirurgião é a vida extraviada que Mário Tavares reencarnou. Este livro é, pois, um acto de resgate. O que o conquistou das sombras foi a cirurgia luminosa do Dr. Mário Tavares.
E resgatou-o porque este testemunho merece ser relido. Regressa assim ao nosso convívio depois de uma hibernação, interrompida por mão humana.
O livro é, também, um exercício de desconforto. E talvez seja este o factor que mais alvoroçou a curiosidade do Dr. Mário Tavares. Estamos em 1808. Portugal é traumaticamente invadido. A Corte ausentara-se para o Brasil em Novembro e 1807, carreada em oito naus, três fragatas, três brigues e duas escunas. Tudo a abarrotar de pessoas, bens, medos e lágrimas. E, no entanto, este furor militar que se abate sobre Portugal representa para muitos uma oportunidade civilizacional. Com essa invasão chegam a Portugal os grandíloquos princípios do liberalismo, nesta época ainda eivados de uma natural limpidez teórica. Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Rousseau, Voltaire, Montaigne, Diderot. Textos animados por uma convicção pela qual o mundo poderia ser construído, com base jurídica, numa ordem justa; transformando o direito num objecto de beleza, uma beleza responsável por definir postulados que se afirmem guardiões dessa ordem justa.
Habitando um universo de intoleráveis desigualdades sociais, de desprezo absoluto pelos mais elementares direitos do Homem, aqueles que a Declaração de 26 de Agosto de 1789 proclamara. Um reino onde o nepotismo e a corrupção depravavam a sanidade do sistema social; um país aonde os ecos das revoluções liberais chegavam como luzes de progresso que tardavam em se acender.
A presença em solo português de tropas que transportavam nas suas mochilas um novo quadro de valores civilizacionais, valores que haveriam de mudar a face de toda a existência humana, era aguardada por muitos portugueses com uma impaciência quase imaculada.
Mas... Seria essa impaciência patriótica? O futuro do país dependente de uma turba de arruaceiros violentos e desordeiros, liderados por um escol elitista de oficiais conscientes da sua missão histórica, mas sem o menor rebuço em tolerar entre as suas fileiras as mais temíveis infâmias?
Quem nesta sala estaria hoje disposto a aceitar uma coisa dessas? Quem, apenas para que as suas ideias vingassem, aceitaria ver o seu país invadido por estranhos rufias, de armas em punho? Quem os apoiaria?
Como chamar patriota a quem aceite ver os seus compatriotas violentados por tropas estrangeiras?
Como poderiam os mais informados, justamente os mais informados dos cidadãos, ignorar que chegara a oportunidade excepcional de acabar com a secular e infamante barreira de sangue que discriminava um cidadão de outro?
O livro fala-nos de um português que tomou partido; tomou partido pelas forças invasoras do seu país. O seu depoimento é o de alguém que ininterruptamente se sente escrutinado pela história. Em cada página ele nos convida a perceber porque tomou este partido. Será má consciência ou um indefectível proselitismo liberal?
Pouco importa, na verdade. Em história, tudo é contexto. Mas na vida real, o contexto impõe que se tome partido. Este livro fala-nos de um homem que tomou partido. Um homem que tenta explicar o inexplicável. Aceitar o inaceitável. Defender o indefensável. E, concordando ou não, nós compreendemo-lo. Conhecemos o seu segredo. Partilhamos a sua aflição.
Cinco dias depois dos fuzilamentos das Caldas, Junot escrevia a Napoleão o seguinte:
“Lisboa 14 de Fevereiro de 1808
A Sua Majestade
Tenho a honra de comunicar a V. M. que nos primeiros dias de Fevereiro, 100 soldados franceses doentes que se dirigiam ao hospital das Caldas foram insultados por alguns portugueses aos quais se juntou o Regimento de Infantaria de linha do Porto; não houve mortos, apenas alguns feridos. Enviei imediatamente ao local o General Loison com ordens para cumprir o decreto que segue em anexo, depois de apurar com exactidão a verdade dos factos; este General comunicou-me hoje que o regimento foi licenciado e os seus oficiais e soldados mandados para suas casas sob a vigilância das autoridades civis e militares e que a comissão militar nomeada ad hoc condenou à morte 15 indivíduos dos quais foram executados 9, pois os outros andam fugidos.
Este terrível exemplo ensinará aos portugueses o que devem recear quando ousarem insultar os soldados franceses.”
A utilidade do historiador resume-se a tentar perceber. Idealmente nem a história devia servir para criar pontes para o presente ou preparar o futuro. A história foi. Tentar perceber o que foi sem outras demandas é, contudo, tarefa impossível. Atingir aquilo que os gregos designavam por epochê - a suspensão dos juízos. Será isso possível em história? Creio que não é. Existe história séria sem o tentar? Creio que não há. A participação do historiador no objecto narrado é irrefreável. Mas a consciência dessa insidiosa perversão do objecto histórico permite-nos, ao menos minimizar, os riscos de ingerência, os danos colaterais da deturpação.
Aquilo que mais me seduz nos estudos de história é a afirmação de todas as ambiguidades e incongruências do ser humano e das sociedades. Cada vez pressinto simpatizar mais com o que os melhores estudos de história vêm expondo acerca da vacuidade dos grandes sistemas organizadores e para tudo quanto representa a autenticidade falível de um evento, uma biografia ou de uma qualquer necropsia historiográfica. No mínimo, trata-se de argumentações de crescente efemeridade. Neste sentido, conceitos tradicionais como escola, contexto, conjuntura, marco, causa, efeito, estrutura, e muitos outros ainda em uso, são representações que vacilam e vêm acusando o toque. Num momento em que as ideologias assumem a precariedade como elemento, este sim, constituinte da sua formulação, não é espantoso que esta consciência se nos vulgarize.
O livro do Dr. Mário Tavares fala-nos deste desconforto. O de sabermos que o dilema impossível que se colocou a Manoel de Sá Mattos em 1808 pode muito bem ser o nosso, a cada dia que passa. Amanhã de manhã. Tomar partido. Todos compreendemos agora o que desejava um ardente liberal num mundo absolutista. Todos conjecturamos o que poderia significar ver o nosso país, amanhã de manhã, ocupado por tropas violentas estrangeiras. E, ao perceber o dilema, abandonamos o caminho fácil do julgamento. O historiador não é um árbitro. É, antes de tudo o mais, um escritor. O seu leitor acompanha de longe um enredo. O historiador desenrola novelos com o poder de intimar a memória.
O livro do Dr. Mário Tavares fala-nos da iminência da morte como uma inerência da memória. Somos apenas aquilo que outrem lembrará de nós. O futuro de tudo quanto dizemos e fazemos permanece apenas numa jurisdição que nos escapa. Somos, nesse sentido, a memória dos outros. Este estudo, mais do que comemorar uma efeméride, comemora uma efemeridade.
A intervenção cívica implica a reflexão sobre estas efemeridades. De que serve participar civicamente na nossa comunidade? O que significa este “onde” que todos somos a que se refere o grande Pessoa? Contexto? Tomar partido? A resposta encontra-se na decisão anti-patriótica ou fundamente consciente, legítima e corajosa de Manoel de Sá Mattos. Não há forma digna de viver sem viver com dignidade. E a dignidade constrói-se pela afirmação do que realmente pensamos e fazemos. Do que somos, enfim.
Só conheço três coisas por que vale a pena viver: ter a oportunidade de amar, ser merecedor da graça de ser amado por alguém e procurar não fazer mal a ninguém. Nada mais justifica esta exaustão permanente que é a vida.
O Farpas Pombalinas, ou melhor, as pessoas que são o Farpas, que o lêem, que o combatem, que o contrariam, que se irritam e que o defendem com unhas e dentes, representa esta pulsão pela vida e pela indomável imprescindibilidade de assumir uma causa, com e contra este ou aquele partido, com e contra o que esta ou aquela pessoa representam. Estar presente e ser presente feito.
A memória, essa cínica e hipócrita memória que em duas ou três gerações se encarregará de dissipar toda a nossa existência, a existência toda de todos quantos aqui estamos, obriga-nos ao dever de lutar por garantir que essas futuras pessoas, essas mesmas que de nós se não lembrarão, têm vida melhor por causa daquilo que por elas fazemos hoje. Nesse sentido, o combate pela memória é o que torna a nossa passagem pela terra tão virtuosa e indispensável. É a nossa função. Tentar perceber e, só depois, participar.
O que menos se suporta na morte é a sua completa falta de pudor. O franzino e quebradiço pudor é também o que nos impede de matar tanto quanto a morte o faz. Toda a memória é obra do pudor. Sem ele, sem ela, tudo é, todos somos, como o pai de um escritor: um mar de vidro espalhado no chão".
Rui Correia (professor, historiador, músico e ex-autarca nas Caldas da Rainha)

26 de abril de 2019

24 Abril, dia cheio e dia grande


Audição como testemunha. Passagem a arguido por recusa em entregar um pião do “inimigo”.
Quando o "inimigo" se consome na canalhice, deixá-lo consumir-se. E afirmar a honra e a verticalidade.
Depois, noite ainda maior: casa cheia, espírito livre e alegre, convívio fraterno, debate rico.
Isto (também) é o Farpas.
Viva a Liberdade.

Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa


Pessoa afirmou-o e eu repito-o: “Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa”. É uma verdade que nos entra pelos sentidos e se aloja na alma. Nesta pobre terra, em decadência, que é a nossa, ainda é mais assim.
O que se passa aqui dói. Dói a pobreza franciscana que nos afecta; e dói o amolecimento moral e o falso moralismo que a suporta. Vive-se, aqui, neste lago de águas paradas - habitat ideal para os oportunistas e os manhosos - uma vida social dormente, indolente, insípida. Valoriza-se o fraco, o pobre, o profético. Perdeu-se a distinção humana entre o falso e o verdadeiro, entre o grandioso e o medíocre, entre a verdade e a mentira, entre decência e indecência.
Este caldo de cultura afecta as nossas vidas mais do que se supõe. O desfalecimento gradual da economia do concelho – a morte da agricultura, o adiamento da industrialização, a queda abrupta da construção, o soçobro lento do comércio e dos serviços - é, talvez, a consequência mais nefasta e visível. Mas a ausência de força criadora, de actividade artística, de cidadania activa é preocupante. Esta terra não vai cumprir seu ideal: concelho charneira. Temos sido dirigidos por gente sem energia e sem rasgo, por “pobres-diabos sempre com fome - ou com fome de almoço, ou com fome de celebridade, ou com fome das sobremesas da vida”. Uns vorazes, outros simplesmente à procura da maça-do-chão; gente ávida de protagonismo, de dirigir qualquer coisa ou coisa nenhuma. E temos muito povo manhoso, à espera da vantagem em relação ao vizinho, da esmola cada vez mais escassa.
Acusam-nos de dizer mal de tudo. Não é verdade. Não somos capazes! Quanto mais vemos, mais há para ver. A realidade não pára de nos surpreender. Quando levantamos mais uma ponta de um véu, sentimos vómitos, e, às vezes, provocamos um vómito para aliviar a vontade de vomitar. Continuamos a olhar para a triste realidade porque deixar de ver também faz doer os olhos. Bem sabemos que o antibiótico da denúncia, mesmo aplicado em dose forte, não mata este vírus multi-resistente, mas ajuda a conter a propagação.
Comemoramos o 11.º aniversário no pico da notoriedade e penetração. Fazemo-lo com um sentimento doce e agro: o nosso sucesso é um insucesso de muita coisa e muita gente  - não é necessariamente um bom sinal colectivo.
Nunca corremos atrás de elogios ou palmadinhas nas costas - deixamos isso para outros. Não espero - não esperamos - que nos compreendam, só que nos leiam. “Repudiei sempre – como diz Pessoa - que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade”.

25 de abril de 2019

Descubra as diferenças


Pela primeira vez em vários anos, não passo o 25 de Abril em Pombal. Rumei para terras algarvias. 

Quando cá cheguei, tive a curiosidade em procurar saber das diferentes programações das comemorações do 25 de Abril. Confesso que não tinha grande expectativa, até porque estou em Albufeira, concelho que nesta altura do ano tem muitos turistas estrangeiros; as próprias comunidades locais são também elas de imigrantes (Brasileira, Paquistanesa, Indiana, Cabo-Verdiana), mas enganei-me redondamente! 
Encontrei um Programa de comemorações de 3 dias, cuja organização é naturalmente da Câmara Municipal (só por curiosidade é social democrata), mas tem a co-organização das Juntas de Freguesia e de algumas Associações locais. Actividades desde o desporto, à cultura,  musica, encontra-se um pouco de tudo. Houve também hastear da bandeira na Câmara Municipal, com largada de pombos e distribuição de cravos. Porém, também em todas as Juntas de Freguesias haverá cerimónia de hastear das bandeiras, e as diferentes actividades das comemorações são “espalhadas” pelo concelho. Hoje à tarde (para onde irei), há piquenique com tarde musical de tributo a Zeca Afonso, recital de poemas alusivos à revolução, insufláveis e pinturas faciais para crianças…
E Pombal?
Vamos encontrando iniciativas como da Ideias Ousadas, que ontem na ADAC, não quis deixar de comemorar o dia da Liberdade; o Farpas que há 11 anos resistentemente vai organizando, não só o seu jantar de aniversário mas como diariamente vai cumprindo o seu papel cívico; encontrei também uma iniciativa (muito tímida) confesso, que não sei se teve qualquer impacto, mas que para começo é de salutar. O GEAS- Gabinete de Acção Social de Almagreira, Carriço e Louriçal: organizou em cada freguesia uma sessão com o Tema “Onde estava no 25 de Abril de 1974’”. Nos convites dizia-se que era em conjunto com as Juntas de Freguesias, mas ao visitar os respectivos sites só o Carriço fez a divulgação…
E o nosso Município? 
Bom, esse gosta de organizar eventos da idade média (nada contra) e agora deve andar muito ocupado com o Festival Pombalino (nada contra também). Esquece-se que o Poder Local foi uma grande conquista de Abril! Que a Democracia foi uma grande conquista de Abril que deve ser relembrada e melhorada todos os dias, e que festejar o 25 de Abril nem que seja para nos relembrar disso!
Principalmente quando temos um Presidente de Junta (eleito democraticamente pelo povo) a partilhar nas redes sociais, imagens e frases de Salazar, está tudo dito ao ponto (miserável) a que chegamos!
25 de Abril Sempre! Fascismo nunca mais!

24 de abril de 2019

O fardo que Pombal carrega neste Abril

Desde que Diogo Mateus chegou a presidente da Câmara, as comemorações do 25 de Abril deixaram de contar com intervenção política. Um dia chamou os líderes das diversas bancadas  - que na Assembleia Municipal representam os partidos políticos - e fez-lhes uma espécie de canto da sereia: que era importante desanuviar, arejar as comemorações, trazê-las para a rua. Os partidos anuíram, com ressalva para o PCP. E foi o que se viu, é o que se vê. O esforço táctico para que não subsista qualquer mensagem política, sem direito a laudatório discurso de resposta por parte de quem manda e pode.
As comemorações deste ano são um bom exemplo do esforço que se faz no Largo do Cardal para fazer de conta, para tornar inócua uma data como esta.
Fazemos de conta que estamos em festa, pá: arranja-se um concerto para a véspera (Capitão Fausto é coisa que não aquece nem arrefece, por isso cumpre bem o número), depois chama-se uma banda filarmónica para fazer a arruada da manhã, e já que se vai chamar alguém para falar, convida-se como orador o almirante Silva Ribeiro, nascido em Pombal, actual Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, que trocará a sessão nacional para vir à terra, falar d'"As Forças Armadas ao Serviço da paz e da segurança no mundo". A palestra poderá revelar-se muito útil para quem se interessa por estes temas, como será o caso do nosso presidente da Câmara, agora que está empenhado em concluir o seu curso de auditor de defesa nacional. 
O resto é costumeiro e alivia a consciência. Coroas de flores no monumento aos Heróis do Ultramar e no busto de Salgueiro Maia, e está feita a festa.
Mas este ano o poder autárquico - conquista de Abril, convém lembrar - conseguiu superar-se. Marcou para esta tarde a reunião da Assembleia Municipal, que é uma boa ocasião para ser forte com os fracos. E marcou para dia 26, sexta-feira, a reunião de Câmara, não vão os senhores vereadores ter a veleidade de ir para fora, procurar outras paragens para a festa e usar esse dia como ponte. Alinhadinhas, as Juntas de Freguesias seguiram-lhe o exemplo, marcando as assembleias também para hoje e para sexta-feira. 
E por isso não é de estranhar que o Município exiba, desde há cinco anos, uma escultura que lhe serve de cartão de visita, à entrada para o café concerto: um homem curvado, cedendo ao 'peso' da revolução. Por mais que passe por ela, nunca me é indiferente. Está cumprida a intenção do poder.  
O espírito de Abril que por aqui paira é este, que mais uma vez o Farpas vai contrariar, entre a noite e e o dia em que se cumprem 11 anos deste blogue.  Por isso, logo à noite, no Hotel Pombalense, abrimos a porta ao dia inicial, inteiro e limpo.
Não passarão. 

22 de abril de 2019

Os Vampiros da Liberdade

O mês de Abril é sempre propício a reflexões sobre a liberdade. Estamos particularmente num período difícil, precisamente porque só nos lembramos da revolução de Abril….em Abril!
Com a agravante que na nossa terra, o 25 de abril, não passa do mero “depósito” de uma coroa de cravos no busto de Salgueiro Maia!
Não é por acaso que toda esta onda populista se vai instalando um pouco por todo o mundo, e cá, timidamente, já o vamos sentindo. Serão apenas os políticos os únicos culpados do estado a que chegamos? Claro que têm a sua quota de culpa, mas considero que todos nos temos demitido da nossa condição de cidadão activo. Cidadania activa não se pode resumir apenas e só ao acto de Votar. É muito mais do que isso. É ter voz, é ter opinião, é pensar, é discutir, é exigir a quem nos governa responsabilidades e participar activamente na sua comunidade. Bem sei, que “ousar” ser um cidadão activo, nem sempre é bem aceite por aqueles que nos governam. Até porque é sempre muito incómodo. Tem sido difícil (não se gosta) de pensamentos “desalinhados”, precisamente porque falta-nos a maturidade democrática em perceber que é precisamente na diferença e na diversidade de pensamentos e opiniões, que reside a essência da democracia!
Alimentar a democracia não passa só por ter melhores políticos, mas passa também por termos cidadãos mais exigentes, mais críticos (a critica não tem que ser necessariamente negativa), mais activos e Livres! Livres no pensamento essencialmente.


20 de abril de 2019

Divagações

Derreti boa parte dos melhores anos da vida nos cafés. Nos últimos anos, afastei-me deles, ou eles de mim. De vez em quando, sem saber por quê, volto… Hoje (sexta-feira), fui ao Nicola. Nunca gostei do Nicola; não do café, mas da sua clientela. Actualmente está diferente, ou indiferente. Gostava mais do Luna, café e sala de jogos, mas desse não vale a pena falar - não existe, nem em recordações.
Tomei um café; e fiquei por lá um bocado. O Nicola está banal. De resto, nos cafés dos nossos dias tudo é banal. Reparo que duas criaturas numa mesa ao lado e três noutra conversam. Com ar distraído, entretenho-me a ouvir as duas conversas, uma com um ouvido, outra com o outro (sempre gostei de exercitar esta faculdade outiva). Os dois reformados da mesa ao lado lamentam a falta de rumo para os novos, e contam em histórias sem pés nem cabeça as suas vidas sofridas. Acho que eles conversam simplesmente para encher os dias. Noutra mesa sentam-se três que parecem formar uma família; falam de coisas nítidas e verosímeis. A mulher conta o caso da sobrinha que tinha acabado de entrar para a câmara; sente-se bem a falar dela com ar de quem dá conselhos de como dar caminho à vida.
Entra o Faria, acena a todos e todos respondem. Logo depois, entra um homem de meia-idade, atarracado, com cabeça redonda e orelhas tesas, traz fato azul-escuro e camisa branca por debaixo da gravata vermelha; desceu dos passos do concelho, denota uma felicidade contida, cumprimenta todos, o Faria de forma mais efusiva. O seu jeito folgazão esconde uma malícia singular que salta aos olhos. A mulher aproveita o momento para lhe agradecer um favor, que ele desvaloriza de forma cordata. Parece incomodado.
Surgem-me memórias vagas de outros tempos que ficam, por uns instantes, no pensamento: um Nicola sempre cheio e um presidente que ali fazia política e distribuía atenções às claras. E logo de seguida, sem razão aparente, cai-me no pensamento imagens do actual soberano, na capital, por entre oficiais e outros que tais, cada vez mais longe dos seus concidadãos.
Ai, meu Pombal!

18 de abril de 2019

Orçamento Participativo: E o burro sou eu?...

O orçamento participativo é muito positivo e permite, em teoria, que a sociedade civil tenha um papel importante no desenvolvimento de projectos locais.
A proposta do ARCUDA foi a grande vencedora desta ano, conseguindo uma mobilização invejável. com 902 votos. Tem agora à sua disposição 80.000 euros para a Remodelação de Balneários, Impermeabilização e Manutenção de Bancadas do Parque Desportivo de Albergaria dos Doze. Grande merecedor pelo esforço e mobilização conseguida em torno desta iniciativa!
O Grupo Desportivo da Ilha ficou apenas a 18 votos do primeiro lugar e vai ter que adiar o sonho da ‘requalificação do polidesportivo da Ilha’ (com letra maiúscula – será que a comissão técnica ainda não se apercebeu do erro ortográfico?).
Foi uma participação recorde em Pombal, com 2490 votos, no entanto os 3 projectos mais votados arrecadaram 97% dos votos… deixando os remanescentes 82 votos distribuídos pelos restantes 5 (no total foram 8, os projectos admitidos).
Mas o processo está longe de garantir a credibilidade que merecia. Porquê?
  • O despacho de 13 de Fevereiro de 2019 do Presidente da Câmara para o vereador Pedro Brilhante em que “são evidentes, os elementos de descontrole, ilegitimidade e ingerência política no processo”. Acresce ainda que não aceita e “a edição de lista, sem cumprir os mecanismos regulamentares aplicáveis – despacho do Presidente da Câmara – é um facto grave e revelador de muitos elementos que caracterizam a atuação de quem coordena o processo” …;
  • O não cumprimento de prazos e adiamentos sucessivos a fechar com chave de ouro a não divulgação dos resultados no sábado, dia 13, e apenas ser divulgado o vencedor 3 dias depois, sem qualquer justificação. Se o voto era on-line e transparente por que razão demorou 3 dias a publicar os resultados? Havia alguma ingerência a ser corrigida?
  • A pouca ou deficiente informação dos projectos para com os proponentes dos mesmos;
  • A “coincidência” que o primeiro e terceiro projecto (Pombal – Jogos Municipais) mais votados perfazer a exata quantia de 99.231,00€ o que torna elegíveis para financiamento estes dois projetos;
  • O facto do terceiro projeto ter sido proposto pelo Presidente da Concelhia do PSD de SOURE Tiago Ramos;
  • A curiosidade de que há uns anos ter sido rejeitado (e bem) um projeto muito similar dos lados do Louriçal e agora parece que não se obedecem aos mesmos critérios;
  • Que o terceiro projeto mais votado, que é muito vago e que de acordo com o regulamento não deveria ser aprovado. Nas regras, ponto 4, lê-se “não serão consideradas propostas que (…) sejam demasiado genéricas ou muito abrangentes, não permitindo a sua adaptação a projeto”;
É pena, muita mesmo, que uma iniciativa que deveria ser extremamente positiva coloque nos cidadãos tanta indignação e uma imagem negativa daqueles que nos representam e são democraticamente eleitos…
Não admira que nos venha à memória um frase batida: “E o burro sou eu? Só estava a ajudar o menino”