O Príncipe saiu da
primeira contenda com a nova velha oposição inchado e pomposo, com a forma como
tinha espezinhado o Comendador e o seu ajudante. Mas estava-lhe atravessado
terem-no apanhado em falso naquilo que é mais forte: os papéis.
Mal terminou a
refrega, o Pança aproximou-se do Amo e começou logo a massajar-lhe o ego - “boa
coça, Alteza”, “boa coça, Alteza”,… - pensado que, enchendo-o de elogios,
evitava as arrochadas. Sem resultado. O Príncipe ordenou-lhe logo de forma
seca: - apresentai-vos no meu gabinete com a vossa ajudante, depressa.
O Pança chamou a ajudante
e apresentaram-se de imediato...
- Entrai, entrai…. Explicai-me:
o que tendes andado a fazer para não terdes feito nada do que devíeis terdes
feito? – perguntou o Príncipe, agastado.
- Senhor meu Amo, os
bacharéis atrasaram-se - não trabalham ao nosso ritmo - e, agora, falta-me
tempo para andar sempre em cima deles – disse o Pança.
- Como tendes o
descaramento de dizer que vos faltou tempo, se tivestes vinte e tal dias para
preparar e enviar todos os papéis? – perguntou o Príncipe, exaltado.
- Eu agora tenho
outros afazeres, e fiquei com menos uma ajudante – afirmou o Pança.
- Tendes menos uma
ajudante porque quisestes correr com ela…- rematou o Príncipe.
- Tem razão, Alteza –
anuiu o Pança. Mas…
- Não te desculpes
com outros afazeres; escudeiro é escudeiro, não tem outro Senhor nem ócios -
tornou o Príncipe.
- Eu dedico o dever,
assim como a alma, primeiro a Deus, depois a Vossa Alteza; mas, agora, também
tenho que dedicar alguma atenção aos meus fregueses; até porque o Boi não sabe
nada daquilo – aditou o Pança.
- Pança; conheceis a
história da rã que se quis igualar ao boi? - perguntou o Príncipe, com ar
irónico.
- Não, Alteza. Mas
contai, que deve ser engraçada – pediu o Pança.
- …Fez-se inchar;
tanto, tanto, …, que rebentou! – disse o Príncipe.
- O Senhor é mesmo
muito engraçado, e desagradecido…- afirmou o Pança, com alguma malícia. E
prosseguiu: - E não deixa ninguém brilhar…Ainda agora acabei de me expor, e expor
o meu tarefeiro, com o corte do directo, para proteger Vossa Excelência da
censura pública, e já estou aqui a levar porrada ao pé da minha sujeita.
- Pança, não te
agradeço; o cometido feito de que te orgulhas me enxovalha – afiançou o
Príncipe.
- Mas, Vós mesmo,
Alteza, me insinuastes o feito – atalhou o Pança.
- Cala-te, Pança;
senão ainda mais razões me dais para repisar a merecida reprimenda – avisou o
Príncipe.
- Merecida uma ova –
retorquiu o Pança. E acrescentou: - O que Vos deixou tão colérico?
- Tem juízo; Pança.
Obedece e não faças perguntas – reavisou o Príncipe.
- Vossa Mercê está de
uma maneira que nem Satanás o atura. Se não temperar essa ruindade perde o resto
do cabelo – tornou o Pança.
- Por tua vida,
Pança, nem mais um pio! – ordenou o Príncipe. E acrescentou: - Melhor te fora
nunca terdes nascido, do que deixares de agradar-me agora.
- Não vos agastais
meu caro Senhor; estamos aqui, a vossos pés, para sermos mandados e obedecer –
disse o Pança.
- É melhor que assim seja. Porque hás-de
saber, Pança, se o não sabes, que há duas coisas, que mais que todas as outras,
não tolero: o erro e o demando – afirmou o Príncipe.
- Eu sei, Alteza. Mas
não preciseis de ser tão colérico com escudeiro tão fiel. Guardai as bordoadas
para aqueles traidores danados; eles merecem-nas todas, e só se perdem as que
caem no chão – disse o Pança.
- Devíeis de saber,
Pança, que quem faz imoderado uso da espora, termina por matar a montaria. Ao
soberano interessa sempre manter vivo um inimigo – afirmou o Príncipe.
- Mas digo-lhe mais:
quando ele falou no mano fiquei fora de mim, se o Senhor me tivesse dado um
sinal, tinha-lhe dado umas boas murraças – afirmou o Pança, ainda a ferver.
- Põe-te no teu
lugar, Pança; este tipo de pendências não é para ti. Mas sereis necessário,
quando for preciso sujar as mãos – rematou o Príncipe.
Miguel Saavedra