O convento de Santo António parece amaldiçoado por almas danadas, pelo demónio; é local de encantamentos, de maus-olhados e de refregas inusitadas. Há muito que o cura Vaz, farto de ouvir mágoas no confessionário, sobre medos e aflições, gritos e emudecimentos, ringido de portas e zumbido nos beirais, tinha sugerido ao Pança benzer e regar todo do convento, com o hissope e muita água-benta. O Pança transmitiu ao Príncipe a bondosa mercê, mas este ignorou-a, por não acreditar que as penitências do cura Vaz cheguem ao Senhor.
Mas a verdade verdadeira é que o Pança e o Príncipe têm andado fora da Graça de Deus, com questiúnculas e pendências regulares. As práticas para finalizar o Orçamento Régio mostraram o desnorte e descoco reinante, ao ponto de tirarem do sério, e arrastarem para refrega indecorosa, a donzela das Mouriscas. Mas a coisa correu-lhes mal. A donzela das Mouriscas não se deixou enrolar com meia-dúzia de lérias; mostrou ser pessoa mui singular, com virtudes e manhas desconhecidas; descompôs, por atacado, um e outro; e determinou, logo ali, e deixou assentado, que sendo a coisa aprovada seria anulada. O Príncipe ficou muito enojado com as trapalhadas do Pança, e com os agravos deste à donzela das Mouriscas, pessoa que mui estimava.
- Vinde cá, Pança, e explicai-me a trapalhada com o envio das convocatórias para a reunião sobre o Orçamento Régio – ordenou o Príncipe.
- Foi tudo feito conforme os procedimentos, Alteza; se alguma não chegou ao destino, azar o deles.
- Não desconverses, Pança. Dizei-me: foram bem endereçadas? – perguntou o Príncipe.
- Não sei, Alteza; a escrita não é da minha conta – afirmou o Pança. Mas sentindo o Amo insatisfeito com a desculpa, acrescentou: - O amanuense pode ter trocado alguma morada, comete muitos erros, anda deslembrado…
- Se o admitis o erro, Pança, por que não vos desculpastes à doutora das Mouriscas? Por que infernizastes o juízo à doce donzela, com mentiras e agravos, ao ponto de despertares a cólera em tão bondosos peitos? – perguntou o Príncipe, num tom irritado.
- Porque contava com a sua mentira, Alteza. Mas se errei, porque não desfez Vossa Mercê o erro, assumindo-o? perguntou o Pança.
- Porque esse é o teu dever, Pança - és escudeiro, sabeis? – indagou o Príncipe.
- Sei, Alteza; mas neste reino uma pessoa é preso por ter cão e preso por não ter – exclamou o Pança.
- Cala-te, Pança, cala-te – ordenou o Príncipe; - Já devíeis saber que as afrontas que ferem directamente à formosura e presunção das mulheres, despertam nelas grande cólera e acendem o desejo da vingança.
- Conselhos; sabe Vossa Mercê dar, mas…(cala-te boca) - …- observou o Pança
-Teus aleives, Pança, o juízo me varam – afirmou, desolado o Príncipe. E prosseguiu:- comigo nunca chegarás a cavaleiro, nunca passarás de simples escudeiro.
- Convosco, Alteza, ninguém sobe, só desce – retorquiu o Pança; e acrescentou: - eu já aderi à causa monárquica, meus feitos hão-de fazer-me cavaleiro – retorquiu o Pança.
- Enganas-te, Pança, enganas-te! Com festas e bolos enganas os tolos, mas não enganas nobres de funda linhagem – afirmou o Príncipe.
- Se até o Senhor os engana, porque não os hei-de eu enganar? – indagou o Pança.
- Cala-te desventurado escudeiro, alma de cântaro, coração de rija madeira, que tantas e tamanhas vergonhas e desafores me tens feito passar, nos últimos dias. Se a janela deste convento fosse mais alta atirava-te pela janela, mas como não é, aplico-te correctivo equivalente: mil e trezentos açoites no lombo.
- Co`os diabos! Não achai, o Senhor, demais?
- Não, Pança; até estou a ser meigo; não há ruim estudante de doutrina que os não leve todos os meses – afiançou o Príncipe.
- Perdoai-me, meu Amo. Vos juro e prometo, pelas Chagas de Cristo, que não tornarei a errar.
- Perdoar-te, Pança, perdoarei; depois de cumprido o correctivo – reafirmou o Príncipe.
- O Senhor é muito desagradecido, e vingativo. Mas se tem que ser, que seja; quem está habituado a levar bordoadas, também arca com uns açoites – afirmou o Pança, resignado -; mas dizei-me: - Terei que os levar todos de uma vez?
- Deveria ser, Pança; mas como talvez ficásseis muito dorido, e és necessário, concedo que os fracciones até ao final do ano, duas dúzias por dia, uma de manhã e outra à noite.
- E posso escolher quem mos dá? – perguntou o Pança.
- Não, Pança; a primeira dúzia dar-tos-ei, para que percebas a força como devem ser dados. Os restantes ficam por tua conta, mas terão que ser dados a valer e por tua vontade, não consinto que mão alheia tos dê – a boa penitência deve ser feita pelo próprio, para poder ser agradecida pelo Senhor.
Oh alma despiedosa! Quem vos devesse fugir mais do que ajudar. Pensou o Pança, mas não o verberou.
Miguel Saavedra
Chegou mesmo aqui agora uma Pomba Branca com o terrível segredo do castigo do Pança. Este natal o Pança conseguiu que a pista de gelo, seja mesmo de gelo e não de plástico...Para castigo terá que fazer SKU na inauguração da, agora sim, pista de gelo natalícia.
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