12 de novembro de 2019

Que Cultura é esta? O debate (e o Farpas) visto pelo Pedro Miguel

As Farpas Pombalinas são isso mesmo. Cenas que espetam e é uma chatice tirar. O poder local irrita-se e isso, como todos sabemos, não é cadastro, é currículo. Oportunidades falhadas, quem as não tem? Pedras no caminho? Guardam-se todas e um dia faz-se uma instalação ali na praça. Há que admitir que esta coisa de ter vergonha de falhar, enerva. Assim como assim, prefiro o Beckett e falhar melhor.  O que as Farpas Pombalinas vêm demonstrar é que há igualmente um outro País, fora dos grandes centros, que pulsa e que sempre foi contemporâneo, mesmo em ambientes mais adversos.  Vai nisto, a realidade entra em acção. Com que então a malta quer cultura? Mais ou menos. Se der jeito. It's complicated, como se dizia nas definições pessoais das redes sociais. Ainda assim, faz-se o que a cada um tem na veneta, em perfeita anarquia. Tem tudo para correr mal... e é tão bom.
Nunca foi crime trocar uma ida ao teatro, museu, concerto, por ficar enterrado numa poltrona fofinha, comprada em promoção na loja da JOM à beira da Estrada Nacional nº1 (true story). Mas esta nossa tradição Católica Apostólica Romana, do ai-meu-deus-o-que-é-que-as-pessoas-vão-pensar, não deixa que as coisas fiquem assim. Com jeitinho, a malta ainda acredita que mantém a face e que os outros pensam que isto é só gente culta. Só que não. Uma pesquisa rápida pelos dados do Eurobarómetro, sobre a participação cultural em Portugal, indicava que, não sendo novidade, oficializou-se o declínio na maioria das práticas culturais. Por outras palavras, em termos genéricos e que englobam todas as artes, a malta não vai às cenas e a que vai é pouca. Não há dinheiro para usufruir de muita coisa, mas também é certo que há falta de interesse. Os casos de iliteracia são gritantes e a falta de exigência é tal que, só por se ler um livro ou um jornal já se é quase considerado 'intelectual'. Credo. O problema da cultura em Portugal também é, portanto, cultural.
O compromisso com o território e com as pessoas que nele habitam - como vem nos livros - tenta-se cumprir à risca. Sim, há propostas, mas não se gosta de tudo (com direito a unlikes como consequência, um clássico). Já agora: também anda por aí muita coisa que não tem qualidade e estranho seria se assim não fosse. Muitos que nas suas mais variadas profissões apregoam o mérito e a exigência, de repente, para a cultura querem que seja um saco de gatos, sem filtros, sem critério. Não pode ser. Já se disse que a questão da cultura é cultural e a maneira como se olha para estas questões é sintomática. Depois há o direito fundamental de não gostar... para ambas as partes.
A estupidez humana é uma coisa fascinante e há momentos de um fascínio arrebatador. Faz parte. Apesar das honrosas excepções que fazem a regra, o interesse por coisas novas vai tendo alguma resistência. Acho eu e é uma posição muito pessoal mas já sentida na pele. Trocado por miúdos, ao invés da curiosidade, a validação dos seus próprios gostos costuma mostrar-se mais eficaz. É uma faca de dois legumes, ou lá como se diz isso. A certa altura é como ter um amor platónico, sem aquelo bafo quente na nuca.
Como diz a outra: "Que fazer?" isto da cultura dá uma trabalheira do caraças, as pessoas têm a sua vida. Por exemplo, este texto está a ser adaptado de um outro que escrevi há uns anos mas não faz mal. Desde que faça sentido está tudo bem, certo?  Jon Stewart (apesar deste ter tido qualidade até ao fim), nos últimos dias como apresentador do seu Daily Show, exorcizou no programa algo que já lhe deveria estar atravessado há muito tempo: "Entram à borla e fartam-se de criticar". "Já passaram 30 segundos, faz-me rir, rapaz-macaco!", exemplificou o apresentador. "Estão a borrifar-se para as nossas famílias, as nossas vidas. São cruéis. (…) "Isto parece o Coliseu", momento em que se levanta e abre os braços. "NÃO ESTÃO ENTRETIDOS?", grita. "Não querem saber. Querem-nos deixar sem sangue", diz com ironia. Nisto, alguém do público grita: "We love you!". Jon Stewart, sempre bem disposto, responde: "Isso não é amor. Se fosse amor, traziam uma sopinha, perguntavam se estavas bem. Amor não é "faz mais programas! Entretém-me!", concluiu.

Mas são estes momentos que ninguém nos tira e que poderemos contar aos netos. Se for possível é para fazer tudo outra vez. E em pior. As Farpas Pombalinas merecem uma medalha. São como aquele senhor que mantém o carvão on fire com um secador. Quem não tem cão caça com gato. Longa vida para as Farpas Pombalinas.


Pedro Miguel

*44 anos,  nasceu em Viseu mas vive em Leiria desde que se lembra. Está ligado a Associações Culturais desde 1995, com passagens pelo Nariz Teatro de Grupo e Fade In . Paralelamente foi DJ durante 20 anos e fez rádio durante meia década. Foi membro fundador e editor do projecto de media online, Preguiça Magazine, colaborou com o Omnichord Records (Surma, First Breath After Coma) e acompanhou de perto os principais eventos culturais não só da cidade de Leiria como da região centro dos últimos 25 anos.  Licenciado em Comunicação Social, tem o mestrado em Comunicação e Media e actualmente está no 2º ano do doutoramento em Discursos: Cultura, História e Sociedade na Universidade de Coimbra. Profissionalmente (e sem ordem cronológica)  foi actor, Dj residente em duas discotecas, jornalista cultural, roadie dos Silence 4, mas a grande aventura foi ter trabalhado durante mais de 10 anos com o coreógrafo Rui Horta, com o qual fez diversas tournées europeias. Actualmente pode dizer-se que é investigador, tem participado em alguns congressos na área da sociologia e estudos culturais, e trabalha também na livraria Arquivo, em Leiria. Tem três livros publicados, dois de ficção, sendo o último, Uma Cena ao Centro, um apanhado histórico da cena musical da região centro entre  1990 e 1999. Toca teclados, pandeireta, aspirador e berbequim no grupo Ayamonte Cidade Rodrigo. Adora um bom frango no churrasco e tem uma panca saudável pela banda industrial alemã Einsturzende Neubauten

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