6 de julho de 2021

Onde se dá conta da mui digna cerimónia da conquista da ensinança inferior e da eminente conquista do Pança

Aos dois dias do mês de julho do ano de mil seiscentos e vinte e um, o nosso mui alto, magnânimo e esforçado Príncipe conquistava para o reino uma extensão da Escola Superior do reino vizinho, que aqui virá ministrar ensinança dita de inferior, mas mui necessária para este atardado reino. 


A mercê foi concedida pelo mui digno e singular ministro da ensinança superior do reino de Portucale, grande criador e defensor da ensinança inferior, que foi recebido, com grande solenidade, ordem e regimento, no mui bem engalanado auditório da biblioteca do reino, para a concretização do acto. Para a dita cerimónia foram igualmente convidados a regedora da região centro e o mui distinto reitor da dita escola superior, agora dedicada ao inferior. O Príncipe fez-se acompanhar pela bibliotecária-mor, promovida a educadora do reino, pelo ministro das obras-tortas e pelos principais senhores e senhoras do reino que muito embelezaram o rito. A doutora das mouriscas completou discretamente o enfeite.

Na hora de falar, o Príncipe fez uma arenga mui bem-feita e bem conforme aos ditos cursos, esqueceu por momentos as críticas à política de ensino do reino, e meteu palavras e sentenças tão notáveis que pareciam de prudente príncipe. No final, agraciou as ditas figuras com medalhas (de latão) e cabazes de comedura.

O Pança esteve, desta vez, diligente e discreto, mostrou muita prestança, trato e proficiência na disposição e assento das distintas figuras segundo as suas precedências. No final, intercedeu, junto do Amo, por uma reunião como ministro do reino, que o meteu logo no lugar, sussurrando-lhe que “reuniões com ministros do reino não são coisa para criaturas da tua condição”. 

No mesmo dia, depois de tudo feito e acabado, o Príncipe alardeava grande contentamento pelo número, mas o Pança não disfarçava o azedume.

- Estais chateado, Pança, depois de tão grandiosa jornada?  

O Pança puxou o pé direito para junto do esquerdo, endireitou-se, hirto, levantou os calcanhares, encolheu a barriga, franziu a testa e encheu as bochechas.

- Estou, e tenho que estar, porque o Senhor é muito desagradecido – replicou o Pança. Agora que me proponho conquistar um condado, só para mim, e quando precisava muito da Vossa ajuda e amparo, Vossa Mercê nem se digna mexer uma palha por este tão leal e esforçado servidor.

- Apoio, sim, se o merecerdes…

- Claro que mereço, uma extensão desta dita escola no meu condado, e até merecia mais. 

- E tendes, nesse teu condado, necessidades de ensinamento que justifiquem a dita escola?

- Claro, Alteza… 

- Então dize-me, quais…?

- Técnico de semeadura da fava; técnico de apanha e descasca da fava; técnico de cozedura da fava; técnico tirador de finos; técnico virador de frangos; etc.

- Tendes ideias, e necessidades... Mas dize-me outra cousa, Pança: sois vós, que não sois doutor, que ireis administrar a dita escola? 

- Bem sei que para isso, que o Senhor refere, é preciso um canudo, e bem sei que ainda o não tenho - vou adquiri-lo na dita escola -, mas já sou reconhecido como tal, e até já dou ordens a doutores, doutoras e até a ministros deste reino, bem dadas e melhor obedecidas. 

- Então, quem tendes para a reitoria da escola? 

- Tenho tudo alinhavado; já falei com uma doutora, com dois cursos, minha conterrânea, que aceitou logo o cargo…

- Não me digas que é a Flor?! 

- Essa mesmo… - confirmou o Pança; e completou: - é pessoa de muito mando e palavreado, que muito nos tem ajudado nas refregas. Veja só, Alteza, como ela meteu o conde do Oeste na ordem e se atirou aos nossos traidores.

- Não haja dúvida, Pança; sois um homem apaixonado por poder, e por favas… Apesar do pouco siso, entendimento boto e ânimo temerário, foste-me leal. Conceder-te-ei a mercê que tanto suplicas – extensão da escola de ensinança inferior no teu condado.

- Em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo; Ámen. (Deve estar algum Santo para cair do Altar, pensou mas não o disse). Obrigado, Alteza. Deixai-me beijar as reais mãos e jurar-Vos lealdade eterna.

- Vai com Deus, Pança, e sempre na Graça de Deus, e não abuses da sorte nem do cargo, que por tão estreita senda vai o conde, ou o príncipe, como o jornaleiro.

                                                                                    Miguel Saavedra


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