Aos vinte dias do mês de Dezembro do ano de mil seiscentos e dezanove, o Príncipe mandou reunir os seus conselheiros para dar conta dos danos e males que S. Pedro tinha descarregado, na véspera, sobre o principado; dar conta das acções que mui oportunamente soubera tomar; tomar conselho; e, formalizar a troca de um Pedro por outro (Pedro).
Há hora marcada, marcaram presença na sala grande dos paços, com grande solenidade, ordem e regimento, tudo em grande perfeição; o Príncipe, em alto estrado na sua cadeira real, e mais abaixo; a Educadora-mor; o Obras-Tortas; a marquesa Prada; o comendador das Meirinhas; o conselheiro Coiso, o conselheiro Humano e a conselheira das Mouriscas; em seus assentos segundo suas precedências. O conselheiro Jota chegou com atraso por a charrete em que seguia ter descarrilhado outra vez.
O Príncipe começou por, de forma muito sentida e com uma arenga mui conforme ao caso, dar conta dos danos e das tormentas que tinham apoquentado o principado, na véspera; dos vastos trabalhos que tinha determinado para socorrer as vítimas; e das muitas fadigas que Ele próprio em pessoa cumpriu, por terras do Louriçal, onde rezou na Igreja de São Tiago e pediu compaixão a S. Pedro; por terras do Oeste; por terras da Redinha; e no açude, onde administrou o caudal do rio durante toda a noite.
De seguida, o Príncipe informou os conselheiros que, obtida a renúncia da conselheira do Oeste, e estando a governação manca, tinha convidado o conselheiro Pedro Humano, homem sesudo, mui obediente, e engenhoso no controlo dos bytes (alçapão por onde se têm esvaído os documentos secretos do trono), para substituir o ministro Jota, que previamente exonerara. E determinou logo ali e deixou assentado, que o novo ministro iria superintender os pelouros do ex-ministro Jota; e, posto isto, deu a palavra aos conselheiros.
O Pedro Humano, envergonhado por passar a Desumano, agradeceu, com palavras de fiel vassalo, a grande mercê que o Príncipe se dignou ofertar-lhe, e jurou total obediência.
A conselheira das Mouriscas tomou a dianteira e cumpriu rapidamente a formalidade, com palavras mui amorosas, asseverou muita confiança e contentamento por o conselheiro Humano ter siso designado ministro.
O conselheiro Coiso, grande paladino da honra, da moral e da ética, teceu uma grande léria sobre companheirismo e rectidão, com a propriedade e autenticidade que lhe é conhecida, atestando que o seu companheiro Humano, amigo de longa data, era tipo mui capaz; a quem, infelizmente, a providência divina tinha retirado as vértebras.
O comendador das Meirinhas, que não é homem de grandes finezas e lealdades, também quis fazer fala, mas falou tão mal e com palavras tão piedosas para o novo ministro, e tão em desacordo com o conselheiro Coiso, que este nem o quis ouvir.
Já a arenga ia longa, e o ambiente toldado, quando entrou na sala o conselheiro Jota, mui laborioso e bom falante, responsável e respeitoso, que se foi sentar no lugar do costume. Na sua vez, pediu a palavra que logo lhe foi concedida; e com falas mui ásperas e mui feias, destratou, sempre em crescendo, o Príncipe; Senhor mui poderoso, de grandessíssimas virtudes e bondades, excelentes costumes e manhas, mui generoso e mui cristão; acusando-o de lhe ter retirado, sem causa, ofício e a renda a que tinha direito, e de os ter entregado, de imediato, a um traidor sem direitos.
O Príncipe mostrou-se mui agastado e mui revoltado com os maus modos e as cousas feias e desonestas que o conselheiro Jota lhe dirigiu; atribuiu o mau pensar ao acidente; e confirmou que retirou o ofício e a renda ao conselheiro Jota por não poder ter ministro desleixado, que passa o tempo na diversão e na politiquice.
O conselheiro Jota replicou, com palavras ainda mais azedas; dizendo que o Príncipe não lhe dava lições de trabalho por nunca ter trabalhado senão na política; e desafiou o Príncipe a apresentar provas do seu mau trabalhar.
O Príncipe, com a cortesia e sensatez que lhe é conhecida, rematou simplesmente: - “Sois só mal criado, e nada mais do que isso”. Alguém sussurrou por entre os dentes: - “Quer parecer tão nobre, mas vezes demais o diabo fala pela sua boca”.
Terminados os trabalhos, o Príncipe convidou os conselheiros para o tradicional almoço de Natal. Seguidamente, discretamente, chamou o Pança e ordenou-lhe que, em saindo fora do convento, fosse o conselheiro Jota preso, levado para a praça velha, e largado dentro da cisterna.
Um Santo Natal!
Viva o Príncipe!
Viva o Principado!
Miguel Saavedra