Se cá estivesse, Mário Soares faria 100 anos este sábado, 7 de Dezembro. Ainda bem que não está, tal seria o desgosto com o estado a que chegámos, no país, a que chegou o partido que sonhou. Um e outro envoltos num manto de liberdade, com espaço para quem pensa diferente, no respeito pelos valores de Abril. Imagino-o a dar voltas no túmulo sempre que a tv nos mostra as tiradas de Leão ou Sanfona, exemplo claro de quem, sendo do PS, nunca foi socialista. Ou com outros que nunca chegam a ser notícia.
Soares nasceu num berço de ouro, podemos dizê-lo, e fez parte de uma franja que tomou consciência do que era ser privilegiado. De como seria se calçasse outros sapatos, às vezes tamancos, como aqueles que os meus pais calçavam ao domingo para ir à missa, no tempo em que Soares já era preso, ou forçado ao exílio.
Não sei que idade tinha eu quando ouvi falar dele pela primeira vez, mas foi antes daquelas eleições de 1986, em que quase todos os meus amigos da escola gritavam no recreio o slogan ‘Prá Frente, Portugal’, enquanto o meu pai – regressado da tão cinzenta Alemanha – me deixou colar no Kispo vermelho um autocolante a dizer “Soares é Fixe”.
Muitos antes, o meu tio Costa apareceu lá em casa com uma bandeira de tecido e o símbolo do PS bordado. Iam (os meus pais e os meus tios) a um jantar de apoio a uma candidatura qualquer, em que ele era esperado. O meu tio acabara de regressar à aldeia, também, reformado dessa dura profissão de estivador. Sentavam-se na placa do poço, no quintal, e falavam de política. Da guerra, que deixara mazelas em toda(s) a(s) família(s), da pobreza em que cresceram, do país que sonhavam para as filhas. De Soares, falavam sempre com a deferência de quem se refere a um ser maior.
Na primavera de 1994 tive a sorte de o acompanhar, em reportagem para o Região de Leiria, na sua presidência aberta pelo distrito. Soares era imponente, até no trato. A dada altura, reparou em mim, no meu indisfarçável pouco à vontade em tão gigante tarefa, e perguntou-me: “Então? Aguenta?”. Senti-me ainda mais pequena, perante um homem que era enorme.
Dois anos depois, a 8 de Dezembro de 1996, voltei a vê-lo, imponente, na inauguração da Casa-Museu João Soares, nas Cortes, um espaço que todas as crianças e jovens deste país deveriam visitar. Desse dia guardo dois momentos: o Betinho (fotógrafo do Diário de Leiria, prematuramente desaparecido) em cima de um telhado para captar a melhor imagem, e Soares a ralhar com ele: “ó homem saia daí que você ainda cai daí abaixo!’. E mais tarde, o episódio que daria títulos à imprensa nacional: “o meu pai costumava dizer, quando o elogiavam muito, ´sou apenas filho de um vacão do Soutocico´”.
Escrevo estas memórias enquanto a RTP 3 passa em reposição “O caminho faz-se caminhando”, uma conversa sobre o mundo e a História entre Mário Soares e Clara Ferreira Alves, onde fica tão patente a dimensão intelectual de Soares, num tempo em que os políticos eram também seres pensantes, senhores de uma cultura geral avassaladora. Que privilegiava o confronto, a divergência de opinião (como lembrou ainda hoje António Campos), em detrimento do elogio e da bajulação.
Era assim, ele. Socialista, republicano e laico.
Faz-nos falta todos os dias.