14 de novembro de 2022

Onde se dá conta dos festejos do dia do reino

Sabíeis que ao décimo primeiro dia do mês de novembro se celebrava o dia do reino; mas este ano, com o profeta ao leme, ficastes sabendo que a efeméride se estende por uma semana. E mais: sabe este bem informado escriba, que o profeta deseja alargar a coisa até a ligar aos festejos do Natal, e depois aos do Ano Novo, e de seguida ao Carnaval.

Na véspera do dia do reino aconteceram coisas mui importantes e de grande interesse, que serão aqui ignoradas por troca com outras ainda mais importantes e grandiosas.



No dia do reino, o profeta, acompanhado pelo prelado, as mais altas autoridades civis e militares, o oficial-mor das cortes, os seus discípulos, senhores e outras pessoas mui principais, de sangue-azul, mui galantes e ricamente ataviados, recebeu, nos Paços do Concelho, logo pela manhã, os convidados, os servidores do reino e outra muita e limpa gente que se quis ajuntar à mais alta e mais pomposa celebração, que principiou com o muito solene Hastear das Bandeiras, ao toque da fanfarra, a seu tempo formada para o efeito.

De seguida, caminharam todos para Igreja da Nossa Senhora do Cardal, já de vésperas mui bem ornamentada, com velas, tochas, mirra e incenso, e vastos ornamentos florais, tudo em muito boa ordem e perfeição, para assistirem à Eucaristia em Honra de São Martinho, em boa hora introduzida no programa antes da Sessão Solene, para que a glorificação dos homenageados se fizesse na Graça do Senhor, como manda a doutrina.

O cura Vaz presidiu à Eucaristia, mui bem acompanhado por dois missionários africanos que deram cor e sentido ecuménico à celebração, com grande perfeição, ordem e solenidade, com orações e preces a Deus e ao nosso santo padroeiro, ora na língua do povo ora no latim dos senhores mui principais, sempre mui bem acompanhado pelo Coro, pelo Grupo de Louvor e pelo devoto povo, nos cânticos e nas preces, numa comunhão, fé e entusiasmo cristão como nunca se havia visto, que até parecia coisa milagrosa.

Tomada a comunhão, o profeta e o seu séquito seguiram para o Teatro do Reino, onde cada qual foi arrumado conforme a sua precedência. Como é da praxe, o profeta proferiu um sermão mui laudatório, tanto ao povo como os senhores principais. Depois, desfilou a catrefa de medalhados: gentis-homens, gentis-senhoras, mui importantes entidades e servidores do reino, e até alguns pecadores, hereges e maus cristãos, mas idem… - tudo com muita pompa mundana.

De seguida, o nosso profeta mandou servir mui abastado banquete, com infinitas e diversas iguarias, às principais pessoas do reino, aos homenageados e aos convidados; tendo faltado algumas pessoas secundárias do reino, mui desagradecidas.

A vasta ementa de festejos foi-se desenrolando p`la capital e por muitas vilas, praças e ruas, com diversas iniciativas, grandes novidades e muitas invenções, tudo com muita alegria e grande folia, para grande divertimento e distração do povo e dos nossos soberanos.

Para o último dia, o nosso profeta mimoseou o povo com a mui espampanante Floribela e o mui pimba Emanuel, que percorreram as vilas e as praças do reino cantarolando “Não tenho nada e tenho, tenho tudo / Sou rico em sonhos e pobre, pobre em ouro”, e “Nós pimba / nós pimba”, para delícia da criançada, dos crescidos e dos enfraquecidos.

Como é costume, tão extensos e extenuantes festejos deixaram o nosso profeta coxo dos sentidos, derreado do corpo e enfraquecido da moina, sem ânimo para retornar ao fadário que é para ele a governação, e a precisar de férias.

Viva o Reino.

Viva o Profeta.

                                                                          Miguel Saavedra 

1 comentário:

  1. O profeta, o oficial mor das cortes, o cura Vaz,
    Pessoas mui principais, galantes e ricamente ataviadas...
    Uma doçura de prosa...
    Amigo Saavedra, sempre que o meu amigo aparece a gente delicia-se com a sua escrita que nos transporta a um mundo pretérito, mas sempre nostálgico, que até o objeto do assunto passa quase despercebido.
    Os visados são os mesmos de sempre, mas a prosa, de cada vez, encanta mais pela sua construção.
    Sei bem que há uma mordacidade atual intencional, que no entanto acaba passando para segundo lugar dado o pitoresco do relato.
    Continue que a gente aprecia.
    Parabéns.

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