11 de agosto de 2017

Onde se dá conta da conversa (azeda) do Príncipe com o Pança

O Príncipe, depois de mais uma noite mal dormida, apresentou-se abespinhado no trono. Ao passar pela donzela do serviço ordenou-lhe que chamasse o Pança; ao que a ela respondeu:
- O Pança está de férias, Alteza.
- O Pança não tem direito a férias. Mande-o vir, e rápido… - ordenou o Príncipe.
- Vou tentar, Alteza – respondeu, com reservas, a donzela.
Mal se tinha sentado, estava ainda a digerir as reservas da donzela, e já esta se apresentava à porta para informar Sua Alteza que o Pança estava a banhos no Sul…
- Ligai-lhe, e passai-mo…- ordenou o Príncipe.
- Assim farei, Alteza – retorquiu a donzela.
Daí a pouco estava a donzela a informar que tinha o Pança em linha. O Príncipe atendeu, e começou inquirindo:
- Por onde andas Pança? Porque vos ausentastes neste momento crítico?
Ao que o Pança respondeu, seguro: - estou de férias, Alteza! Também mereço…
- Um escudeiro, fiel e próximo, não tem direito a férias – deve estar sempre disponível para o seu Amo. Fizeste de propósito, malandro? Perguntou o Príncipe em tom provocatório.
- Credo, Alteza! Não sejais assim comigo... Eu dedico o dever, assim como a alma, primeiro a Deus, depois a Vossa Alteza – afirmou, condoído, o Pança. E acrescentou: mas também preciso de uns dias de bom-passadio com a família...
- Ausentastes-vos e deixastes-me sozinho no período mais crítico – afirmou o Príncipe.
- É por pouco tempo, Alteza – contrapôs o Pança. E o Senhor não está sozinho: tem a sua equipa, os mandatários …
- Não me lembreis coisas tristes… – afirmou o Príncipe - Perdi a confiança nos ministros, e eles em mim; se alguma vez a houve…
- Não acredito... Tenho lido - como é minha obrigação (mesmo em ócio) - os boatos que eles inventam ou reproduzem no sítio subversivo, mas não os levei a sério. Aquilo é só para nos destabilizar. Não valorize, Alteza; o povo está sereno e controlado – é muito fiel ao partido do regime - …- contrapôs o Pança.
- Gostava de acreditar no que me dizeis, Pança; mas não posso: estamos rodeados de inimigos...- afirmou o Príncipe.
- Acreditai-me, Majestade; as coisas estão controladas: a oposição está abafada, e o Inimigo será posto na ordem no momento certo. Deixai-o aos cuidados do meu desprazer – contrapôs, novamente, o Pança.
- Não digas sandices, Pança. Como coisas estão, corro sérios riscos de ser derribado do poder por um velho tonto. Dize-me, Pança: haverá maior humilhação...? – perguntou, afirmando, o Príncipe.
- Não gosto nada de o ver tão inseguro…. É mau presságio…- referiu o Pança
- É a realidade, Pança: os inimigos estão no nosso seio. O que designas por Inimigo é só adversário, e previsível…- afirmou o Príncipe. E continuou: - preciso de ti, aqui, no terreno…Há muito trabalho sujo para fazer, e para esse tipo de trabalho não se encontra facilmente quem o saiba ou o aceite fazer.
- Esta fase é de formalidades…E o Senhor está muito bem apoiado por dois correligionários doutos em leis – afirmou o Pança.
- Enganas-te, Pança: o da propaganda já saltou fora; e no Trincaferros não posso confiar…
- O Senhor não confia em ninguém…Como é que quer que as pessoas confiem em si? – perguntou, afirmando, o Pança.
- Já falaste demais, Pança; e estais no mesmo registo dos outros… Entupíeis-me os ouvidos com palavras que de todo me são insuportáveis. Mas devíeis saber – se não o sabes, já - que te despacho mais facilmente do que aos outros. Faço-te voltar para Contador-de-notas - se eles lá te aceitarem -, e acabo-te com a vida boa …- ameaçou o Príncipe.
- Fazei o que entenderdes, Senhor; já estou, também, por tudo…Esta vida de escudeiro é muito desgraçada e pouco agradecida. E com um amo como o Senhor já vi que nunca chegarei a cavaleiro. O que eu quero mesmo é tornar-me governador do meu condado e fazer-me cavaleiro – concluiu o Pança.
                                                                                                                         Miguel Saavedra

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