Os últimos dias têm custado a passar ao socarrão Pança, tem andado mui atormentado, ao ponto da sua maria já ter notado a mudança de
espírito e lhe ter recomendado “tomai cuidado com o aziado! Quem assim procede
acaba sempre mal”. Mas o desconsolo do Pança, com os últimos mandos do
Príncipe, parece ser daqueles que nem consolação admite; anda roído por dentro
e alterado por fora, de noite não prega olho, de dia não tem maneiras - se
alguma vez as teve –, anda de maus-feles, dá ordens e reprimendas a todos e
sobre tudo; não lhe sai da cabeça a injusta entrega da mui cobiçada chefatura
do apoio aos idosos à filha do mais miserável traidor, inimigo ruim demais para
viver, aqui ou alhures, quanto mais para receber prebendas; não entende, diz
ele, a razão da sem-razão de tal escolha, que contrabalanço Sua Alteza procura,
por que desbarata tão valiosa mortalha com tão ruim defunto, que nada tem para
dar e tudo pode deitar a perder; não saberá, Sua Alteza, que há muita prosélita
à espera duma graça ou de alguma migalha do poder, e vai dar valiosa prebenda ao
inimigo, catano; as prebendas têm que ser bem dadas, primeiro os nossos, depois
os de ninguém, e depois de depois acabou-se; neste negócio da política quem cai
cai e acabou-se.
O Pança sabe que precisa de se conter para não desagradar ao
Amo, que incenso e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, mas tem necessidade
de um pouco de ruibarbo para purgar a sua demasiada cólera; vai daí, sendo muito
devoto da N.ª Sr.ª do Cardal e do Santo P.e Amaro, buscou protecção na
providência divina, já se fez confessar pelo padre Vaz, que lhe prenunciou
penitência ajustada, jejuar uma semana somente a pão-e-água, ao que ele pensou
contrapor que preferia rezar um mês com sopa da pedra e carne barrosã, mas, pelo
sim pelo não, anuiu, e lá foi cumprindo, com um ou outro deslize menor, que o
corpo é fraco e Deus é amigo, e o festival do glorioso, na casa do rival, não
poderia ficar sem festejos a preceito.
A danação interior do Pança, reprimida mas mal contida, não
passou despercebida ao Príncipe, que deixou a coisa moer até ao ponto certo. No
final do dia de despacho, perguntou-lhe:
- Por que andais tão aziado, Pança?
- Desculpai-me a franqueza e fraqueza, Alteza, mas tenho
andado com o miolo em ânsias desde que o Senhor brindou o nosso maior traidor e
inimigo com valiosa prebenda – replicou o Pança.
- Sois mesmo de entendimento boto, Pança; e ainda não aprendestes
nada da arte de mandar e ser obedecido – retrocou o Príncipe.
- Desculpai-me o
reparo, Alteza; posso ser de entendimento fraco, mas tanta bondade condiz mais
com frade – retorquiu o Pança.
- A bondade das coisas, Pança, depende do momento e do
intento. O teu reparo é tão sem sentido que me parece será tempo perdido o que
se gastar para te convencer da minha subtileza e da tua simpleza – Rematou o
Príncipe.
Oh alma despiedosa! Quem vos devesse fugir mais do que
ajudar - pensou o Pança, mas não o verberou.
Miguel Saavedra
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