Ironicamente,
calhou à condessa das Cavadas ser vice do Príncipe nesta fase crítica, de encargo
e protagonismo demais para quem não os quer ter. A condessa já andava muito
insegura e infeliz com as desconsiderações do Príncipe e a falta de
solidariedade dos pares (nomeadamente da Marquesa Prada), e como não enxerga os pecados que cometeu nem as razões do ostracismo em que foi caindo, pior ficou quando
soube que o ministro Videira está despachado e o ministro Jota encaminhado. Neste
calvário, precisava de saber com o que contar ou se conta para alguma coisa, mas tem medo de perguntar, e da resposta. Até porque não são essas as
preocupações do Príncipe. Para ele: primeiro ele, depois ele, e sempre ele.
A
condessa, abatida e desamparada, procurou a protecção do divino: marcou
confissão e aconselhamento com o padre-cura Vaz. À hora marcada apresentou-se
na Igreja do Cardal. Assim que a sentiu chegar, o padre-cura Vaz dirigiu-se
para o confessionário. Cumprimentaram-se de forma cordata e discreta. Sentou-se
ele; ajoelhou-se ela; e benzeram-se. Começou, assim, o padre-cura Vaz:
-
Formosa dama: dizei-me ao que vindes?
- Em
busca de auxílio, Alteza – começou a Condessa. E prossegui: - Que nesta terra
já não há com quem se possa tomar conselho nas incertezas, alívio nos
queixumes, nem remédio na desgraça.
- Sei
bem. Sei que se vivem tempos tumultuosos por causa das eleições – esse
estratagema dos comunistas, para provocar a discórdia entre os cristãos e
colocar hereges no poder. Mas estou certo de que, passado este espavento, tudo serenará,
e esta terra de muitos e bons cristãos retornará os caminhos do Senhor –
sentenciou o padre-cura Vaz.
-
Assim espero, assim espero, Alteza – anuiu a Condessa, e acrescentou: - mas
estes tempos estão a ser muito difíceis, com muita incerteza e sofrimento.
-
Bem sabeis, Senhora, que para alcançar o Reino dos Céus é preciso sofrer.
Cristo deu-nos o Seu exemplo: entregou-se aos fariseus para sofrer e morrer na
cruz, mas ressuscitou e mostrou-nos o caminho da Salvação – relembrou o padre-cura
Vaz.
- Eu
sei, Alteza, eu sei: o sofrimento que leva à redenção é agradecido pelo Senhor;
e eu estou aqui para fazer a minha contrição e cumprir a sua penitência - anuiu
a Condessa. E acrescentou: - Tenho carregado uma cruz muito pesada; mas pior
que o peso da cruz é o que está por detrás dela.
- E
o que está por detrás dela…?
- O
demónio e o seu ajudante – disse a Condessa. Ai o que eu disse! Perdoai-me
Senhor; perdoai-me que pequei – suplicou a Condessa.
- Não
sois a primeira a dizer-mo em confissão. Algo vai mal neste principado –
concluiu o padre-cura Vaz.
- Eu
não o digo a ninguém, porque tenho medo de o dizer. Digo-o aqui porque estou na
casa do Senhor, e a coberto do segredo da confissão: o Príncipe é só aspereza e
rigor, coloca-se num pedestal que rebaixa tudo à sua volta, repreende em
público (e até por escrito) tão asperamente que humilha, excede todos os
limites da censura cordata – desabafou a Condessa.
- Estais
numa profissão maldita que até entre os próprios gera ódios – afirmou o
padre-cura Vaz. Sede paciente até ao fim. Caminhai com cuidado, que o Senhor
vos amparará se fordes cair. E lembrai-vos da lição dos apóstolos: “É mais fácil
um camelo passar pelo buraco de uma agulha, do que eles (os políticos)
alcançarem o Reino dos Céus”. Pecastes por maus pensamentos e palavras, não por
más obras. Nada que uma boa penitência não repare.
- Já
fiz uma grande promessa à Nossa Senhora de Fátima: se aguentar a cruz até ao
fim e for eleita pelo Príncipe, irei em peregrinação a Fátima, no 13 de
Outubro. E estou a pensar no reforço da promessa: atravessar o santuário de
joelhos ou a rastejar. Dizei-me, Alteza: é devoção suficiente? – perguntou a
Condessa.
- A
peregrinação já mostra que a Condessa é uma Senhora de muita fé. O rastejar não
é para uma Senhora da sua condição. O Senhor agradecerá muito mais uma boa
esmola à Nossa Sr.ª do Cardal e, por exemplo, a ida na viagem da nossa paróquia
à Eslovénia e Montenegro – recomendou o padre-cura Vaz.
- Se
Sua Alteza assim o recomenda, assim farei. Mas, por favor, dizei-me: o que
considera a uma boa esmola? – perguntou a Condessa.
-
Nunca menos que um dos vossos ordenados por ano – disse o padre-cura Vaz.
- Para
milagre tão dificultoso, parece-me razoável – anuiu a Condessa.
- Rezai
um Acto de Contrição, um Padre-Nosso e duas Avés-Marias. E ide em paz, formosa
Senhora. Deus vos abençoe – concluiu o padre-cura Vaz. Miguel
Saavedra
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