16 de novembro de 2019

De como o Príncipe distribuiu as comendas e ficou com as honras

Três dias antes o do dia do Reino (o mui santo dia de São Martinho), por haver que atribuir comendas a benfeitores que se houvessem distinguido, o Príncipe mandou chamar os do seu conselho ao Convento de Santo António. Todos os estimáveis conselheiros marcaram presença: o comendador das Meirinhas, o doutor coiso, a doutora da Guia, a doutora das Mouriscas, a marquesa Prada, a Educadora-mor, o ministro das Obras-Tortas, e o conselheiro Jota; mui bem assistidos pelo fiel-escudeiro e pela escrivã-mor.
O Príncipe iniciou as práticas com uma arenga mui bem-feita, com grande solenidade, ordem e regimento, tudo em grande perfeição, e bem conforme ao caso. No final, Sua Alteza deu fala aos conselheiros, que mostraram grande descrição e mui singulares virtudes. 
Iniciou as falas o conselheiro Jota, que destoou um pouco mas sem atingir o desprimor e a fogosidade habitual, ao propor ex-deputado da Nação e actual regedor da vila e a noviça actriz de novela oriunda do oeste; figuras que, apesar de mui principais, doutas e afamadas, não poderiam agradar ao Príncipe. 
Destoou também a doutora das Mouriscas, não pelo estilo, sempre dócil e delicado, mas pelo atrevimento nas propostas, ademais e a muito a desagrado do Príncipe, ao propor o cônsul português em terras gaulesas, a caridosa doutora benzinho, a cozinheira do risoto, e outros. 
O comendador, que não é homem de grandes finezas e lealdades, esteve mui discreto e em grande sintonia com o Príncipe; o doutor coiso não acrescentou coisa que para este escriba mereça registo; e a doutora da Guia esteve, como habitual, silenciosa e portentosa.
O Príncipe a todos ouviu, e com muita atenção. Depois, com palavras mui sábias e muitas razões, rejeitou as propostas por serem de figuras que fazem coisas mais a solto do que deviam, ou sem benefício para o reino, ou por razões de serem figuras sem real condição ou merecimento. Dito isto, silenciou por momentos, para dar entrada dos devidos arrimos; que vieram unicamente da Educadora-mor. Feito o compasso, Sua Alteza afirmou que o reino devia agraciar sete barões já assinalados; e porquê sete?, perguntou Ele e respondeu, afirmando que sete é número perfeito e mui cristão.
De balanço, deu Sua Alteza a conhecer, aos do seu conselho, os sete barões assinalados: os ronaldos da Pelariga; o pasquim “Os Doze”, pela grandiosa história e trabalho; a Misericórdia do Louriçal, pela miseração que pratica; o ilustre museu da pradaria, nas terras de Almagra, que pede meças ao museu do Prado; a indústria maxi, pelos plásticos que plastifica;  a associação dos comerciantes, por sobreviver sem comerciantes; e o laborioso albergariense, de criação pobre mas de mui bom coração (“se isto se pode dizer de um pobre”, soltou num aparte), que por terras gaulesas alcançou muitas cousas e muita renda para si; e com alguma acaridou alguns.
E assim, com tudo consentido e mui bem acabado, a prestimosa escrivã assentou tudo o que Príncipe determinou com os do seu conselho. E todos se foram com grande contentamento pelo grande contributo dado ao reino e à humanidade. Excepto o Pança, coitado, que não compreendia tamanha manha e injustiça do Amo, ao não agraciar o irmão, um escravo do regime, aqui e além; que não agraciasse o cônsul, que nunca fora fiel ao regime, percebia-se; agora o irmão, regedor, deputado da Nação e profeta-maior da boa vontade, não! Resmungava por dentro, o Pança, que por fora não o podia fazer sem lhe cair no lombo mais açoites, e sabia bem que ainda lhe falta dar-se muitos, e o espinhaço já está dorido demais.                         
Viva o Príncipe, Viva o Reino.
                                                                              Miguel Saavedra

1 comentário:

  1. Este é o mais emblemático e apreciado escritor do Farpas.
    A genialidade das suas sátiras em prosa medieval deliciam os leitores não tanto pelas maldades, invejas, oportunismos, ciúmes e vaidades que tão deliciosamente inflacciona nos personagens, mas principalmente pela narrativa deliciosa que nos transporta para um mundo já passado estranhamente parecido com a atualidade...
    Isto é ironia literária superlativa.
    Aos visados conforto-os com a minha visão: Só os que fazem alguma coisa pelo bem público são publicamente visados e nem sempre as aclamações e encómios são as mais eficazes classificações; O ser-se visado pela crítica pública é muito mais uma demonstração de reconhecimento do que
    de uma intenção vexatória.
    Por outro lado os personagens passarão mas a prosa perdurará no futuro a relembrar um passado onde um genial escritor soube parodiar os protagonistas do seu tempo que por essa via serão também relembrados.
    Há que saber apreciar sempre o lado melhor das situações porque os desconfortos momentâneos fazem parte da vida de todos nós, mas passam.
    Parabéns Miguel Saavedra pela partilha do seu talento cuja identidade todos um dia gostaríamos de conhecer e certamente de aclamar num eventual reconhecimento público municipal onde "a Comenda lhe seja atribuída sem outro reter a honra para Ele" porque nesse dia terá de a dividir com todos nós.
    E falamos afinal de quê?
    De cultura com certeza.
    Um abraço

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