O príncipe partiu para o retiro espiritual, que cumpre anualmente, em busca de paz, da expiação dos pecados e da bênção divina para as difíceis pendências que o esperam este ano. Depois, viajará para terras do Sol Nascente.
Ausência tão prolongada, em período tão crítico, levaram o Príncipe a tomar as devidas precauções. Primeiro reuniu com a duquesa Prada e delegou-lhe as formalidades e a representação. Logo de seguida, chamou o seu fiel escudeiro para lhe passar incumbências várias e instruí-lo sobre o modo como proceder na sua ausência.
- Vinde aqui Pança – ordenou o Príncipe.
- Que deseja meu Amo poderoso? Aqui estou – acudiu logo o Pança.
- Ide buscar papel e caneta; que não tendes cabeça suficiente para o rol de incumbências e recados…- disse o Príncipe.
- Aqui estou, pronto e às ordens de Vossa Mercê – acudiu o Pança
- Já deveis saber que vou fazer o meu retiro espiritual…- começou o Príncipe.
- Fazei bem, Alteza – concordou o Pança. Muito gostaria eu de o fazer, também…
- Estes retiros não foram feitos para gente da tua condição…- atalhou logo o Príncipe.
- Percebo Alteza – concordou o Pança.
- Para além de escudeiro, o que sabeis fazer mais? - Perguntou o Príncipe.
- Sei guardar um segredo, estropiar uma história, passar uma mentira, dizer grosseiramente uma mensagem ou uma ordem. Tudo o que um homem ordinário pode fazer, e faço-o com diligência – afirmou o Pança.
- Para escudeiro estais bem equipado. Mas para as incumbências que te quero passar precisais de saber mais…- adiantou o Príncipe.
- Dai-me uma oportunidade que não vos desiludireis, Alteza – asseverou o Pança.
- Vou arriscar. Se sairdes bem das muitas incumbências que te vou atribuir, far-te-ei cavaleiro – disse o Príncipe.
- O Senhor é um santo e um modelo de virtude – retribuiu, babado, o Pança.
- Podeis dizê-lo, Pança; conheceis-me bem. Mas as virtudes carregam-me muito, tenho que me libertar de algumas, preciso de me tornar mais ágil para enfrentar melhor as pendências que se aproximam – referiu o Príncipe.
- Percebo, Alteza – disse o Pança.
- Como já te disse, partirei para o retiro espiritual e depois para terras do Sol Nascente. O ministro das Obras-Tortas viajará para a Gália onde estão muitos dos nossos. A governação ficará entregue à Duquesa Prada e a ti, Pança. A duquesa ficará com as formalidades e a representação. A ti deixarei o controlo das empreitadas e dos ministros, e a vigilância dos nossos correlegionários e do inimigo – ordenou o Príncipe.
- Esteja descansado, Senhor meu – anuiu o Pança.
- Não estou, nem ficarei, mas… – retorquiu o Príncipe.
- Com a bênção de Deus e da Nossa Sr.ª do Cardal vai tudo correr bem – garantiu o Pança.
- Não contes só com Deus e os santos; conta, também, contigo – relembrou o Príncipe. Sede cauto, Pança; não te metas em brigas, refreia a língua, considera e rumina as palavras, antes de te saírem da boca; se não, sereis ceifado antes do tempo – avisou o Príncipe.
- Não receie Vossa Mercê que eu me desmande, nem que diga coisa que não venha muito a pêlo, que eu sigo sempre os conselhos de Vossa Mercê - disse o Pança.
- Então, não andes, Pança, desapertado, que o fato descomposto é sinal de desmazelado. Sê moderado no beber - não abuses da bebida, que bebida em excesso, nem guarda segredos, nem cumpre promessas. E não te enfartes em rissóis, nem arrotes em público - disse o Príncipe.
— Em verdade, senhor — disse o Pança — um dos conselhos que hei-de levar bem de memória é o de não arrotar, por ser uma coisa que faço muito a miúdo. Mas, lá isso de os governar bem não precisa de mo recomendar, porque eu sou naturalmente caritativo e tenho compaixão dos pobres, e os bons hão-de ter de mim o que quiserem, e os maus nem uma figa.
- Bem espero, Pança, bem espero – disse o Príncipe.
E de lá saiu o Pança, inchado e pomposo; não cabia em si de contente. Da sua cabeça não saia o pensamento: “Chegou a minha vez de mandar e ser obedecido”.
Miguel Saavedra
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