A resposta mais pragmática que tenho para a pergunta é: não, mas... E o “mas” que eu gostaria de trazer ao debate tem a ver com transferência do exercício da cidadania, quase por completo, para o mundo virtual.
A discussão da liberdade e do 25 da Abril transcende, obviamente, as contingências desta pandemia. Para os saudosistas do tempo da outra senhora, respigo o que escrevi no O Eco em 2003 e um texto que o Jorge Ferreira partilhou conosco no primeiro aniversário do Farpas, em 2009. Mas hoje o tema é a pandemia e a forma como esta reforçou a nossa condição de cidadãos da internet.
O admirável mundo da internet não é, de maneira nenhuma, um mundo livre. Antes pelo contrário. Várias entidades independentes têm alertado para que as liberdades individuais dos cidadãos vêm sendo, cada vez, mais cerceadas. Este não é um assunto novo, mas, em tempos de pandemia, assume um relevo especial. A forma como hoje aceitamos ser monitorizados excede, em muito, toda a forma de controle exercida sob regimes totalitários como o fascismo ou o nazismo.
Um estudo recente refere que, pelo oitavo ano consecutivo, os internautas são cada vez menos livres para emitir opiniões, sobretudo as que puserem em causa governos ou corporações. É crescente a percepção de que a internet, antes vista como uma tecnologia libertadora, é cada vez mais usada para corromper democracias do que para desestabilizar as ditaduras. A crença neoliberal na teoria da mão invisível, avessa à regulação, permitiu o florescimento de uma sociedade virtual caótica, dominada pelo lucro, e transformou a rede num instrumento de manipulação e vigilância.
Como forma de enfrentar o vírus, um crescente número de países já fala despudoradamente em vigilância digital. Usando como referência o sucesso asiático no combate a epidemias, que se deve, não só aos virologistas e epidemiologistas, mas principalmente aos analistas de dados, matemáticos e informáticos, são cada vez mais as vozes que reclamam o uso do chamado big data no combate à pandemia. Esta mudança de paradigma, que começa a ser discutida na Europa e nos países ocidentais, é perigosa e deve ser combatida.
Em tempos de pandemia não podemos deixar que consciência crítica sucumba perante a vigilância digital. De repente, subestima-se a proteção de dados e ninguém se incomoda com o ímpeto das autoridades em recolher dados. E mesmo que não sejam totalmente verdadeiras as notícias de que a China tenha criado um sistema de crédito social (que só na série Black Mirror pensávamos ser possível), o que é certo é que hoje sabemos que cada clique, cada compra, cada contacto, cada actividade nas redes sociais pode ser controlada. Este é um mundo perigoso. Um mundo que elimina radicalmente a ideia de “esfera privada” não é livre. A nossa privacidade é o último reduto da nossa liberdade.
Há quem acredite que esta pandemia pode vencer o modelo capitalista, assente numa relação assimétrica de valores e na delapidação dos recursos planetários. Simpatizo com a ideia, mas não acredito numa revolução gerada por uma pandemia que nos isola e individualiza. A cidadania virtual não gera nenhum sentimento colectivo forte. O que acredito é que esta pandemia nos pode fazer redescobrir quanto precisamos uns dos outros e de como é importante reconstruir o colectivo. Também acredito que nós, cidadãos do mundo real, logo que possamos partilhar mesa e conspirar em liberdade, iremos procurar o que não existe, sonhar com o que ainda não foi inventado, e combater este modelo de capitalismo destrutivo que, esse sim, nos castra a liberdade.
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