30 de junho de 2009

UM HOMEM




Eis, um homem. Faleceu em 1969. Quarenta anos volvidos sobre o seu desaparecimento físico, a sua obra e personalidade continua mergulhada num profundo e lamentável esquecimento. Médico de formação e crítico literário, ensaísta com títulos tão determinantes como:Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda,Ensaios de Domingo. Colaborou em jornais tão imporantes como, Diabo, o Sol Nascente, Vértice e o Diário de Lisboa. Resistente anti-fascista. Membro da comissão central da organização de juventude do Movimento de Unidade Democrática (o MUD Juvenil). Organizadordo 1º e 2º Congresso Republicano de Aveiro ( 1957, 1969 ). O meu primeiro contacto, com a sua obra foi em Vermoil através da Biblioteca Itinerante da F. Calouste Gulbenkian, e desde aí nunca deixei de reler os seus escritos e ensaios literários. Mas, o seu escrito que mais me impressionou foi esta carta-testamento. Admirável. Aqui vos deixo....






Carta-testamento



Esta carta foi deixada por M. Sacramento em envelope fechado com a indicação «Para ser aberto quando eu morrer» e assinado o envelope com a indicação «Escrito em 7-4-1967»


Caramulo,
Pousada de S. Lourenço,
7 de Abril de 1967

Aos mais adiados...

Vai sendo tempo de escrever uma carta de despedida! A velha carcaça é já uma ruína nítida. A somar às cicatrizes das lesões pulmonares que tive, há bronquiectasias e zonas de enfisema do impossível fumador que sou, as quais hão-de vir a resultar num coração pulmonar. A tensão mínima já começa a ressentir-se disso. O rim deita vestígios acentuados de albumina e cilindros. E o estômago tem qualquer coisa que um destes dias hei-de averiguar... Como não posso nem devo emagrecer excessivamente — são os próprios colegas que mo dizem —, dado o perigo de reactivação das antigas lesões bacilares, o peso é também um contra. E, como deixar de fumar, nesta idade, além de ser um sacrifício inglório que me roubaria um dos poucos apegos concretos que ainda tenho à vida, seria levar-me a engordar ainda mais, o balanço é portanto muito nítido. Quantos anos? Depois dos cinquenta acaba-se, estou convencido. Mais erro, menos erro, a média deve ser essa.

Começo por isso a ter pressa de fazer umas tantas coisas que reservei para a fase final, quando a terrível batalha que travei na sobrevivência contra o fascismo me deixasse, à margem desta profissão cujas dificuldades e condicionamentos económicas, sociais e políticos liquidaram tantos dos meus sonhos, margem para isso. Espero roubar, sempre que possa, alguns dias à labuta e à engrenagem diária e isolar-me, como agora fiz, para escrever qualquer coisa de mais íntimo. Para o romance cíclico que trago há tantos anos na cabeça, não chegará o tempo, decerto. E é melhor assim, pois evito uma desilusão e sempre morrerei com o arzinho angustiado de vítima dum mau destino, o que é chique, como diria o Eça...

Antes de tudo, impõe-se, porém, que escreva estas singelas palavras. Quem pode afiançar-me que não vou acabar hemiplégico e afásico, como minha Mãe? Deixa aqui, então, o que depois não poderás!

Deixar cheira a testamento. E eu, que deixe, só tenho o corpo. Por mais que fizesse, por mais que me fizessem, disso é que nunca consegui ser espoliado! E, como é com ele que me avenho nas noites de insónia e nas porfias diárias, é justo que lhe dedique, ao menos, um pensamento em vida. E não o legue aos cães... Pois não equivaleria a isso estar a ver-me, daqui, de barba feita a posteriori, sapatos engraxados, fato de ver a Deus, a apresentar as minhas despedidas, muito formalizado, de dentro da cabine - especial? Como não tenciono ir para parte nenhuma, metam-me como eu estiver no caixote mais barato que encontrem e devolvam-me os restos à terra. A terra sabe lavar-se. E não há nada como um cadáver «limpo» para marcar um limite.

Se morresse em localidade com forno crematório, não desgostava disso, se não fosse caro. E, por falar em caro: não sei se a terra será o mais barato para o caso, - ó contradições do capitalismo! E, como isto de morrer também «custa» aos outros, há que prevê-lo. A família tem uma pirâmide egípcia em Ílhavo. Embora eu esteja farto de conhecer prisões em vida, como nessa altura quem terá de aguentar isso é «o outro», não me oponho a ir para lá, se for mais económico ou mais fácil de arrumar. Não faço questões nenhumas com a morte... Ela nega-me, e é tudo. A grande magana!

Não, o motivo fundamental desta carta é outro. Aceitei dialogar, nestes últimos tempos, com os católicos. Se tivesse nascido num país protestante ou árabe ou budista, tê-lo-ia feito com esses. Pois do que se tratava — se trata, ó morto-vivo!, ainda não acabaste! — era, é de dialogar com os progressistas e, sobretudo, com o povo, directa ou indirectamente. Não há-de faltar contudo — sempre assim foi, ó alminhas santas! — quem procure fazer sujeira com isso e aproveitar-se duma ambiguidade que surja para me denegrir a memória. Se a minha Mulher ainda estiver viva — ela tem sido boa companheira! Não haverá problemas com isso, estou convencido. E o mesmo se dará se os filhos estiverem atentos: eles têm carácter. Mas quem pode prever tudo? Não que eu faça grande questão do meu bom nome: estou-me nas tintas para ele, depois de morto. Mas, além dele pertencer aos meus companheiros de jornada. E, que diabo, se passei tantos maus bocados por eles, em vida, é porque considerei que era esse o meu destino. E um homem tem o direito de o defender, mesmo depois de morto!

Fica portanto entendido que sou ateu e como ateu devo ser enterrado. Em vez dum pano preto, ponham um paninho vermelho no caixote, se puderem. E usem luto vermelho, se algum quiserem usar...

Mesmo que eu ficasse pílulas ou sugestionável à hora da morte, isso não modificaria ser esta a minha opinião responsável. É esta, por conseguinte, a única válida.

Claro está que gostaria de ter sido melhor homem, melhor marido e melhor pai. A perspectiva da morte só tem de positivo fazer-nos pensar assim. Mas o homem é um bicho complicado. E eu tenho a consciência de que pelo menos, me bati sempre comigo mesmo para ser melhor do que poderia ter sido. Fui amigo da família à minha maneira: sem efusões líricas ou rodriguinhos. E, se não fiz mais por ela, foi porque não pude, tanto no sentido social como psicológico do verbo. A prova de que o meu desejo era ser bom marido e bom pai está no muito que li, pensei e escrevi sobre isso. Sejam os Filhos melhores do que eu pude — foi sempre esse o meu sentido de missão.

Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem — físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais.

Mas, que não as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!

Não veremos o que quisemos, mas quisemos o que vimos. E este querer é um imperativo histórico. Há milhões de mortos a dizer-vos: avante!

Para a Mulher, um abraço, simples e esquivo como eu sempre fui. Para os Filhos, um beijo, frio e recalcado como eu sempre lhes dei. Para todos, um afecto. Quem tinha tão pouco que dar a tantos, teve de ser avaro... Mas morre convencido de que não guardou nada para si. Ou de que teve, pelo menos, essa intenção.

Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!



Mário Sacramento

4 comentários:

  1. Amigo, companheiro e camarada Dr. Adelino Leitão.
    Gostei!
    Não conhecia.
    Mas mais gostei de te ver vivo e vivaço.
    Podia e devia comentar mais o teu post sobre Dr. Mário Sacramento, todavia o tempo e o modo não mo permitem.
    Mas há um pormenor que não posso deixar em claro. Aliás dois.
    O primeiro liga-se à nossa formação cristã. Nada acaba com a morte física.
    O segundo, contradição das contradições, “da terra vieste e à terra voltarás”.
    E eu que sou adepto do crematório.
    Por último, depois da poeira assentar, resta a família.
    As vezes esquecemo-nos disso.
    Abraço.

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  2. Em verdade digo que desconheço o trabalho de Mário Sacramento, mas pode ter a certeza que despertou em mim a curiosidade e decerto será um dos próximos autores que acompanhará as minhas leituras de cabeceira.

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  3. Há um trecho ali que me recorda uma música belissima do Chico Buarque, chamada "Funeral de um lavrador", por certo conhecida da Paula Sofia, que é fã confessa.
    Fica parte da letra, e se alguém quiser a música.. também se arranja! ;-)

    Esta cova em que estás com palmos medida
    É a conta menor que tiraste em vida
    É de bom tamanho nem largo nem fundo
    É a parte que te cabe deste latifúndio
    Não é cova grande, é cova medida
    É a terra que querias ver dividida
    [...]

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  4. Que bem que se comenta aqui, porque Chico Buarque é realmente "dono" de músicas fantásticas.

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