26 de abril de 2014

E depois de Abril

O meu tio Germano voltou da Guiné ferido de morte. Da mesma Guiné onde Salgueiro Maia ficara ferido, já antes dele. Era um rapaz bonito, o meu tio. O penúltimo dos 13 filhos da minha avó Maria, olho azul, como os outros, cabelo ondulado, a vida toda pela frente quando embarcou naquele navio – e de onde nunca regressou, verdadeiramente.

Voltou da Guiné sem feridas visíveis, por fora. De tal forma o corpo parecia são que ingressou nas fileiras da Guarda Fiscal. Na verdade, haveria de passar mais tempo internado na psiquiatria de um hospital militar do que em operações de fiscalização, que não as de fantasmas que atravessaram o oceano dentro dele. Esse retorno à aldeia (de onde partiram tantos outros rapazes) fez-se pouco antes daquela noite, há 40 anos. Nessa altura, vários irmãos (entre eles o meu pai, que teve a sorte de atravessar a guerra numa farda de marinheiro, a menos má da tropa) já tinham trocado os campos de milho da Moita do Boi pelos bairros ajardinados de uma cidade alemã.
A essa hora, enquanto o meu tio Germano tentava enterrar de vez os mortos que trouxe da Guiné, eu dormia descansada o sono de ano e meio de gente, no mesmo quarto onde a minha mãe pedalava o dia inteiro numa velha Singer, de cabeça verde. Escapou, com esse talento da costura, ao destino das irmãs, criadas de servir em casa de senhores de Leiria e arredores. Algumas (e alguns, num total de 10) ajudou ela mesma a nascer, na esteira onde dormia, com a minha avó. Correu quase sempre tudo bem, à excepção da penúltima, que morreu com um mês de vida, sem nunca se saber de quê, enquanto o meu avô amealhava francos nas obras e à noite fechava os olhos num bairro de lata dos arredores de Paris.
Para lá chegar, foi um tormento. Daqueles que fazem parte de uma infindável lista que hoje há quem queira branquear, como se nunca tivesse existido. Primeiro foi preciso arranjar um “passador”, a quem pagou e bem, o meu avô Zé Maria, já então cego de uma vista, por não ter recebido assistência médica atempada depois de um acidente de trabalho. Depois foi o calvário de que não gostava de falar: quatro dias em Espanha, sem nada para comer, até se verem obrigados a mastigar os canoilos do milho e os restos do trigo. A França renascida em betão no pós-guerra fê-lo quase esquecer, em dinheiro, aquilo que a alma guardou bem fundo. Não podia ele imaginar que seria o primeiro de várias gerações da família a povoar as vilas e cidades francesas, numa saga da emigração que conhece, por estes dias, o seu apogeu. Por toda a parte, pelo mundo inteiro. Nessa altura, nessa noite de há 40 anos, ele já dormia numa cama a sério, ao lado da minha avó. Deixara em França três filhos, um deles desertor. A ousadia valeu-lhe ficar 13 anos sem voltar à terra nem aos seus.
Na verdade, dormíamos todos mais ou menos descansados aqui pelo litoral à hora em que os militares seguiam para Lisboa e o país acordava. Nos anos seguintes, o rádio ainda passava a canção da “gaivota”, que eu cantarolava desde que me lembro. Passava a Grândola, a marcha do MFA, e era um dia festivo, em que a minha mãe simbolicamente não se sentava à máquina para trabalhar. Explicava-me, à maneira dela, que estávamos a festejar muita coisa, mas sobretudo a liberdade.
- sabes que antes disso não podíamos dizer mal daqueles senhores do Governo. Aliás, se estivéssemos ali no café a falar num grupo, podiam vir os homens da Pide e levavam-nos presos.
De tal maneira que eu cresci com a ideia de que, se fizesse ou dissesse asneiras, ia presa.
Nunca fui. Nasci em ditadura mas cresci em liberdade. Desde muito nova tive sempre uma imensa pena de não ter nascido uns anos antes para poder viver em pleno aquela madrugada, aquela revolução. Contá-la em reportagem, no mais perfeito dos cenários. Emociono-me com as histórias dos capitães, com o relato dos camaradas da época, como aconteceu ainda na semana passada ali na Arquivo, na apresentação do livro Os Rapazes dos Tanques, de Adelino Gomes e Alfredo Cunha.
Por causa dessa história que é a da minha família, mas também a do meu país, sou eternamente grata àqueles rapazes todos. E mesmo sem ter vivido em ditadura, senti-lhe os efeitos secundários, que aqui ficam lavrados: a guerra, a censura, a mortalidade infantil, a ausência de um Serviço Nacional de Saúde. E as feridas invisíveis, como as do meu tio Germano, que um dia, no Verão de 77, acabou com aquele sofrimento todo no fundo de um poço, lá no quintal da minha avó. Foi o Ultramar que o matou. E isso nunca se pode perdoar a regime nenhum. Da mesma maneira que nunca poderemos perdoar a cada um de nós aquilo que estamos a fazer à democracia, menosprezando-a, demitindo-nos do papel de cidadãos em toda a linha, sem perceber que um dia a coisa se pode inverter: quem adormece em liberdade, acorda em ditadura.
Viva o 25 de Abril!
Viva a Liberdade!
Nota: Este texto foi escrito originalmente para a Preguiça Magazine, onde  à quinta-feira escrevo "O Barulho das Luzes". Não tenho por hábito publicar no Farpas textos que faça para outras publicações, sobretudo por não ser esse o espírito da casa. Mas esta minha história é a de muitos de vós. E é preciso contá-la, tantas vezes quantas forem precisas.

4 comentários:

  1. Paula,
    Esta história tão bem contada e tão comovente tem sempre lugar aqui ou em qualquer lugar. Só alguém que escreve tão bem como tu e que tem a consciência social e politica que tu tens consegue ligar estas pequenas grandes histórias de vida desta forma.
    Emocionou-me quando a li pela primeira vez. Não pelo teu tio que já lá está há muito tempo, mas por todos aqueles que sentiram muito o sofrimento infligido, sem necessidade, pelo anterior regime e pelo atual poder.
    São histórias como esta que têm que ser relembradas aos mais novos (e não só), porque contínuo a ver muito pouca consciência social – e de classe – nomeadamente naqueles mais estão a sofrer com esta profunda, intensa e longa crise.
    Obrigado, Paula.

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  2. Amiga e companheira da caminhada da vida, Paula Sofia, bom dia.
    A história que contas é da vida vivida que nos obrigam a viver.
    Vê só, tendo em conta o meu pequeno horizonte.
    Um dos meus avós, o Felizardo, foi para a Primeira Grande Guerra com 27 anos e por lá andou três anos.
    Veio e morreu com 46 anos, cheio de gaz mostarda.
    Um dos meus tios, o Francisco, esteve em Cabo Verde, na Segunda Grande Guerra, a evitar que os soldados alemães e aliados jogassem à pancada nos bares, já que na Ilha do Sal havia uma base a Norte dos Aliados e outra a Sul dos Alemães.
    Cá, a família, estava nas filas do racionamento.
    Outro dos meus tios esteve na Índia, de onde veio antes da rendição.
    Tenho amigos que estiveram em Timor.
    Tenho muitos outros que estiveram nas guerras do Ultramar e de onde vieram, sabe Deus como.
    E alguns dentro da tal caixinha de pinho.
    Agora sou eu que ando a pelejar numa guerra económica que não comprei e não conheço o inimigo.
    O que se seguirá para as gerações futuras?
    Beijo

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    1. Boa tarde sr Rodrigues.
      Quem é o inimigo que vossemecê peleja nesta guerra económica? Eu digo-lhe quem: corporativismo selvagem. Quem mais dinheiro reúne, com mais poder se julga. Que o diga Rockafeller, ou JP Morgan, por exemplo. Eles personificaram o rosto do corporativismo selvagem, e pagaram um preço por isso. Felizmente, tornaram-se filantropos no fim, mas primeiro saborearam a derrota na Justiça por terem sido homem que explorou (escravizou) outro homem.
      Por muito marxista que pareça todo este texto até agora, as gerações vindouras pagarão um elevado preço, sr Rodrigues: por estas gerações de AGORA nada terem feito, para evitar o descalabro do poder do dinheiro sobre os direitos das pessoas!

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  3. Amigo e companheiro Eduardo Louro, boa noite.
    Assino, por baixo, o seu texto.
    Mas vou mais longe.
    Os Judeus, das catacumbas, dominam o mundo.
    Para eles as pessoas são números frios, como são frias as catacumbas.
    Como é que vamos lutar contra isto?
    Eu cá, não sei.
    Abraço

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