O
Príncipe ficou desapontado com o fraco retorno da visita a terras taurinas. O
povo não aderiu; ignorou-o, até. Chamou o roliço Pança para lhe apontar as falhas.
-
Vinde, aqui, Pança…
-
Que deseja meu Amo poderoso? Aqui estou – respondeu o Pança.
-
Quero ouvir, de-viva-voz, como justificais o falhanço da visita a terras
taurinas? Inquiriu o Príncipe.
-
Porque dizeis isso Senhor Meu Amo? Manejámos bem o que interessava: a governanta
local e o jornaleiro – destacou o Pança.
-
Não Pança. Nesta fase, o que nos interessa é o povo – referiu o Príncipe -; e
não o tivemos… Até a governanta contínua fugidia; apesar das grandes
empreitadas e prebendas que lhe atribuí. Não vos agarreis ao jornaleiro; esse está,
há muito tempo, controlado; se não faz melhor, é por culpa tua ou da Serôdia.
-
Propagandeou o que queríamos…
-
Estais enganados, Pança. Tanto se perde por notícia de mais como por notícia de
menos. Aquela peça dos moinhos só prejudicou – disse o Príncipe.
- Já
dei na cabeça à Serôdia…Várias vezes lhe disse - mas ela não aprende - que não
há necessidade de puxar pelo jornaleiro, pois ele já bajula demais – justificou
e Pança. E acrescentou: - É verdade que não tivemos povo; e ainda não virámos a
governanta, mas já dividimos o grupo.
-
Não percebo aquela gente: é áspera como os carrascos da serra e irritante como
as urtigas da ribeira-de-baixo - observou o Príncipe, descoroçoado. Era-nos tão
fiel - mesmo com o trapaceiro - e tornou-se tão infiel!
-
Nem eu – concordou o Pança. Nada agradecem e tudo contestam...Dá-se-lhes as
coisas e cospem no prato! Mas a culpa não é só deles.
- É
de quem mais... – Perguntou o Príncipe.
- Desculpai-me
o descuido e o reparo – alertou o Pança. E acrescentou: - Vossa Mercê também
não facilita a aproximação, não abdica da pompa régia e de toda a majestade.
- Já
falaste demais, Pança. Quem presta contas, aqui, sois vós – disse o Príncipe
exaltado. E acrescentou: - o roteiro que fizestes não resultou, ponto. Devíeis
saber que aquela gente aprecia mais marradas de toiros do que moinhos de vento.
Teria sido melhor aliciá-los com obras na Praça de Toiros.
-
Talvez, mas limitei-me a seguir indicações – referiu o Pança. E pensou mas não
o disse: “Dar conselhos a este senhor é como dar coices em aguilhão”.
-
Não é isso que espero de um fiel, empenhado e arguto escudeiro. Não me estais a
ajudar a manter o poder – concluiu o Príncipe.
- As
minhas intenções sempre as dirijo para bons fins; que são fazer o melhor pelo
meu Amo, o bem pelos nossos e o mal pelos inimigos – retorquiu o Pança. Se
melhor não faço é porque sou mal industriado.
-
Tereis aí grande dessintonia, entre intenções e resultados, que deveis corrigir
rapidamente – concluiu o Príncipe.
-
Sua Alteza vê todo o mundo pelo avesso, apenas pela face defeituosa, nunca
reconhecendo virtude ou mérito. Um génio assim não é recomendável para ir a
votos.
Miguel Saavedra
IMPRESSÃO DIGITAL
ResponderEliminarOs meus olhos são uns olhos,
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem lutos e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
In Movimento Perpétuo (1956)
Olhos normais os meus que veem tudo através do vidro. Olhos normais os meus que filtram a bondade deixando por terra piedosas menções.
Olhos normais os meus irrigados a vermelho pelo esforço de quebrar o azul verniz que teimam pintar. Olhos normais os meus que leem a verdade nos lábios pérfidos de mentira.
"Os meus olhos" normais são tão iguais a "todos os normais olhos" que no resplandecer da liberdade deixam indelével a impressão digital do "gigante"...