26 de julho de 2019

Do que sucedeu ao nosso farpeiro-mor nas festas do reino

Ia mui descansado, o nosso farpeiro-mor, festejo adentro, quando lhe saiu, da casa em ruínas, um fantasma que o interpelou:
- Ó! farpeiro-mor! Aonde is? Que andais aqui fazendo, sozinho, noite adentro, correndo mil perigos?
O farpeiro-mor estremeceu, parou, mirou o fantasma, e não respondeu; quando se preparava para retomar a marcha, o fantasma insistiu:
- Se vindes à procura de diversão, tende dó dos teus pés, cospe na entrada e torna sobre eles. Que fazeis por aqui? Por que vos perdeis no meio de tanto devoto, num arraial sem luz, sem alegria e sem cor? Ide de volta; afastai-vos do incenso, da neurose religiosa, desta devoção sem honra nem glória, que todavia fará notícia! Maldita terra que é administrada por um soberano que pensa que é o Rei Sol, e tem um pároco que se julga Papa.
- Quem sois, fantasma indiscreto, e que de mim requeres? – perguntou o farpeiro-mor.
- Pacientai, valente farpeiro; esta alma penada é fã vossa – recomendou o fantasma.
- Não perco tempo com fantasmas…- retrocou o farpeiro-mor.
- Sois mui desagradecido, farpeiro-mor; mui e boas farpas vos poderei ofertar – afirmou o fantasma; e prosseguiu: neste reino e neste convento, já fui quase tudo; agora sou bobo da corte – faço espírito com os pobres de espírito.
- Que fazeis, aqui, nesta casa em ruínas? - perguntou o farpeiro-mor.
- Refugiu-me aqui para fugir do Convento Assombrado – afirmou o fantasma.
- Assombrado…? - perguntou o farpeiro-mor.
- Pior, farpeiro-mor, muito pior: amaldiçoado por almas danadas. Vós não sabeis metade do que por lá se passa, ou como diz o rifão, só sabe o que se passa no convento quem está lá dentro. Desconfio que foi amaldiçoado pela alma danada do Sebastião José de Carvalho e Melo, que eles tanto veneram, que pela veneração talvez tenha sido absorvida pelo soberano e rapidamente passada ao escudeiro...
- Cala-te! – exclamou o farpeiro-mor – poupai-me à ladainha do bruxedo. Não tendes vivido muito tempo nesse pântano?
- Porque preciso, Farpeiro-mor, tal como vós precisais. Bem-aventurados os que partiram, e já foram muitos, e muitos mais iriam se pudessem; mas como não podem, têm que suportar este inferno, Satanás e Barrabás – afirmou o fantasma, e prosseguiu: Acreditei – acreditámos – que, depois do provinciano desbocado, seriamos governados por um grande homem. Enganei-me. Saiu-nos um cabeça-grande. Há homens que carecem de tudo, conquanto tenham qualquer coisa em excesso; a esses chamo eu aleijados às avessas: têm pouquíssimo de tudo e uma coisa em demasia. O nosso soberano é um cabeça-grande, um dominador, com uma cara malvada e uma alma vã, que nunca descarta as suas baixezas que tem à mistura com as suas grandezas. Neste convento, não se consegue estar uma hora em sossego: ora é cólera ao soberano; ora são as sandices, os agravos ou os maus modos do escudeiro.
- Dizei-me: com tanto reparo, o Pança ainda não aprendeu nada? – perguntou o farpeiro-mor.
- Pior, caro farpeiro-mor; piorou! Não se percebe se por ser duro da cabeça ou por falta de miolo (que para o mal, o tem). O certo é que, tanto procura parecer uma criatura de bem, como, logo a seguir, procura fazer quantas sensaborias pode, sempre pela via mais a desmodo. Tornou-se um espanta gente. Precisava que alguém o obrigasse a comer uma dúzia de sapos, duas de lagartos, e três de cobras.
                                                                                  Miguel Saavedra

1 comentário:

  1. Este texto esta brutal. Mas temos todos de reflectir que o Rei, o Pança e o seu irmão...foram eleitos pelo povo, logo o povo acha que assim é que está bem e o povo é quem mais ordena. Cabe a quem quer mudar o rumo do Concelho tocar a reunir para construir uma opção e um projecto em que o POVO acredite. O Farpas alerta, denuncia e faz reflectir...mas depois surge o deserto e a propaganda laranja continua imparável a fazer o seu caminho. Desde 1993 que o PSD governa o Concelho e nunca se conseguiu uma alternativa ganhadora. Ás tantas não é só por mau trabalho da oposição, mas também porque o povo se revê na forma de "conquistar" o poder...COM FOLCLORE E BOLOS SE ENGANAM OS TOLOS.

    ResponderEliminar

O comentário que vai submeter será moderado (rejeitado ou aceite na integra), tão breve quanto possível, por um dos administradores.
Se o comentário não abordar a temática do post ou o fizer de forma injuriosa ou difamatória não será publicado. Neste caso, aconselhamo-lo a corrigir o conteúdo ou a linguagem.
Bons comentários.