Depois de uma
semana laboriosa e de um fim-de-semana longo, cheio de eventos e ajuntamentos,
de onde era esperado retorno muito proveitoso que invertesse o derribamento
para infortúnio, o príncipe iniciou a semanada subindo pesarosamente a longa
escadaria até ao trono. Tinha passado uma noite mal dormida, com pequenos
apagamentos intervalados por sonhos sobressaltados com assombrações de
fantasmas furibundos – confessou-o na abertura da reunião com o seu escudeiro.
O príncipe entrou
no gabinete, deixou a porta aberta, e sentou-se no cadeirão. Sentia-se cansado:
corpo dorido e cabeça pesarosa. Chamou o fiel escudeiro:
- Pança, vinde cá…
O escudeiro entrou
e perguntou: - o que deseja Vossa Mercê?
- Senta-te, Pança,
precisamos de falar, e eu de te ouvir. Sabes bem que te considero um fiel
escudeiro, sempre pronto para todo o serviço. Tens-me ajudado nas muitas
pendências em que me tenho metido, reconheço-o, por isso tenho sido generoso
contigo… Mas, como sabes, as coisas estão complicadas, e por mais que me esforce
para ser o que não sou, não se descomplicam. Dize-me, tu que te mexes bem no
meio do povo, o que preciso de fazer mais, para ter povo.
- Quem sou eu para
dar conselhos a Sua Alteza. É verdade que Vossa Mercê mudou muito nos últimos
tempos, e tem usado todo o cardápio de afabilidades: sorrisos, simpatias e
beijos; e abusado de esmolas, prebendas, feitorias, … Mas concordo com Vossa
Mercê: a mesinha não está a resultar…
- Interrompeu o
príncipe, ansioso: - dize-me Pança, por que não está a resultar, se eu me tenho
esforçado tanto; e não sabes tu o quanto me tem custado, que isto de forçar o
corpo, custa; mas contrariar a nossa natureza, violenta.
- Pois o problema
pode estar aí mesmo; mais no curador do que na doença. A doença é muito ruim…
Atalhou logo o príncipe:
- De que doença me estás a falar, Pança?
- Calma, calma,
Senhor. Eu vou tentar explicar; e faltando-me doutas palavras, pego num exemplo
conhecido, que se aplica bem ao (seu) caso. A sua maleza é uma espécie de
tuberculose. E ocorre aqui como no caso do tuberculoso: no princípio é fácil a
cura e difícil o diagnóstico, mas com o decorrer do tempo, se a enfermidade não
foi conhecida nem tratada, torna-se fácil o diagnóstico e difícil a cura. Sua
Alteza estará, com certeza, a aplicar a receita correcta; mas começou tarde, e
talvez não vá a tempo da cura.
- E dizeis-me só
agora, isso, Pança? O que dizem os meus ministros? Também eles, pensam como tu?
- Desculpe-me
Alteza, mas entre príncipe e ministros não se deve escudeiro meter.
- Mas dize-me,
dize-me, Pança? – inquiriu o príncipe marfado - sabes bem que te ordenei que os
vigiasses.
- Quer mesmo saber
a verdade, Senhor? Quer?
- Fala,
Pança…Evita-me este penar.
- Acho que estão
mais descrentes do que eu. Dizem-no à boca cheia pelos corredores, e lá por
fora.
- Mas sabes bem,
Pança; que estamos todos no mesmo barco, e se formos ao fundo…
- Eu não… Eu
regresso aonde saí…
- Enganas-te,
Pança. Ajuda-me a salvar-me, que te salvas também a ti.
- O que está feito,
feito está; agora paciência e fé em Deus, e na Sr.ª do Cardal (minha querida
Senhora). Da minha lavra, não sei o que se pode usar mais. Mas já agora, porque
não se mexe Sua Alteza, junto de quem controla as forças divinas, onde se
movimenta muito bem. Eu não o faço porque a minha condição não mo permite, mas
continuo a assistir à missinha e faço as minhas orações, regularmente.
- Pobre terra - exclamou o príncipe - que nem tem com quem se possa tomar conselho nas incertezas, alívio nos queixumes, nem remédio na desgraça.
Miguel Saavedra
Rendo-me à história e rendo-me ao autor. Há ditados populares errados e "o hábito faz o monge" é um deles.
ResponderEliminarA alma de um monge não espera vinte anos para se mostrar porque é inata e "quem muito se baixa o ... mostra" (este é certo)!
Estratégias, táticas e atos bélicos ou por contraposição a diplomacia uma vez decididos com ponderação não podem nunca, sob circunstância alguma ser alterados. Por vezes devemos manter o erro (quando verdadeiro) do que criar uma falsa realidade. E em dia de ditados "a cura é pior do que o mal" e o "que não tem remédio, remediado está"!!!
Excelente texto (história). Os clássicos contêm palavras mágicas que cruzam tempos de história, nunca perdendo a sabedoria que emanam.
Fantástico este texto... Por acaso segue a foto do Navio e o Príncipe a ficar cada vez mais isolado...pois como nunca deu hipóteses dos seus Ministros pensarem pela própria cabeça e sentirem-se realizados... O Pires foi o primeiro a abandonar a chavena... e os outros penso eu de que irão abandonar também. O Titanic com tanta agua bateu no fundo. O ultimo suspiro vai ser dado pelo SR. dos Passos na Festa da Ribeira de Carnide.
ResponderEliminarQuem é este Saavedra que assina o texto?
ResponderEliminarEste tipo de escrita só me lembra um grande Senhor das letras: Daniel Abrunheiro
EliminarTexto maravilhoso que vale a pena ler e reler quem o escreveu sabe da arte, não adianto nomes ..... mas a criatividade é característica de uma pessoa nossa conhecida que brinca com as palavras do seu rico vocabulário.
ResponderEliminarCaro Adelino,
ResponderEliminarÀs vezes dou comigo a pensar que se o Miguel (Cervantes) Saavedra vivesse em Pombal, não desdenharia em subscrever este seu magnífico texto. Mas sou só eu a pensar!...
Depois do Maquiavel, do Fernando Pessoa e do Nietzche, vem agora... o Cervantes!... Os "milagres" que o Farpas faz!...
Um abraço