17 de outubro de 2019

Que trata do costumado retiro espiritual do Príncipe

O Príncipe partiu para o costumado e merecido retiro espiritual, onde expiará os seus muitos pecados, e limpará a alma através de um período de clausura, meditação e forte penitência, e reencontrará, assim, a paz do Santíssimo Espírito Santo e a Graça do Senhor. 
Antes de partir instruiu o seu fiel escudeiro sobre as prioridades e os modos da ordenança. 
- Pança; vinde aqui…
- Que ordenais, Alteza? – acudiu o Pança.
- Como sabeis; estou de partida para o retiro de S. Josemaria Escrivá…
- Sim, Alteza; sabia mas até já me tinha deslembrado, de tão atarefado que tenho andado a apagar fogos… - afirmou o Pança
- Espero que tudo já esteja serenado, e que, na minha ausência, sejais capaz de colocar na ordem algum rufia mais desvairado – advertiu o Príncipe.
- Ficai sem cuidado, Alteza; deixai isso a meu encargo – afirmou o Pança.
- Não consigo, Pança, porque desta vez quero que assumas as rédeas do reino – ordenou o Príncipe.
- Mui agradecido fico, Alteza, com tamanha distinção – afirmou o Pança; mas Vossa Mercê conhece bem os múltiplos afazeres em que me desdobro: no reino, no meu condado, no partido, no glorioso, e em mais meia dúzia de agremiações…
- Já te avisei, Pança, que és meu escudeiro a tempo inteiro, e só deveis desdobrar-te em afazeres que me sejam úteis – avisou o Príncipe.
- Eu sei, eu sei, Alteza; desculpai-me, e tende sempre mão em mim …– suplicou o Pança.
- Na minha ausência quero ordem e disciplina neste convento, e resposta atempada de todos os pelouros, e rédea curta nos ministros, e vigilância apertada ao jota fusco e a todos os desalinhados – ordenou o Príncipe.
- Se Vossa Mercê o queredes, o teredes. Mas não julgais, Senhor meu Amo, que é carga em demasia para este humilde escudeiro; logo, agora, que Vossa Mercê está pejado de pelouros? 
- Sempre estive, Pança. E bem sabeis que os tenho exercido todos - com a tua prestimosa ajuda – afirmou o Príncipe. 
- Eu sei, Alteza; mas se o Senhor já me tivesse feito cavaleiro, como prometido, ainda vá que não vá…– redarguiu o Pança.  
- É promessa que não ficará por cumprir – garantiu o Príncipe -; mas tereis antes que passar por esta prova.
- Sim, Alteza; percebo que a escadaria do poder tem mais degraus que um escudeiro julga – anuiu o Pança.
- Se cumprirdes com distinção esta prova, só vos ficai a faltar a prova da conquista do poder no partido – afirmou o Príncipe, e atirou de seguida: Mas dize-me lá, Pança: como está essa empreitada? 
 - O que sei dizer a Vossa Mercê — respondeu Pança – é que a empreitada está mui dificultosa: faltam-me apoios: o ex-ministro jota fusco, o Manel e muitos outros dizem que não posso estar sentado em mais cadeiras…- afirmou o Pança, desgostoso. 
- A seu tempo, trataremos dessa empreitada – afirmou o Príncipe. E acrescentou: - Agora, tereis que cumprir esta decisiva etapa da tua ascensão.
- O que tem que ser, tem que ser…- anuiu o Pança
- Mas sede cauto, Pança; faze gala da humildade da tua linhagem, não te deslumbres; esforça-te para te mostrardes pessoa assisada e cordata, evita os agravos, e tende moderação na língua, no trato e nos modos – avisou o Príncipe. 
- Ficai descansado, Senhor meu; procurarei fazer tudo no seu nobre registo – anuiu o Pança.
- Deus te guie, Pança, e te governe – desejou o Príncipe.
- Mui obrigado, Alteza; e graças ao Senhor e a Deus Nosso Senhor – gratulou o Pança.
No dia seguinte, bem cedo, antes de todos, o Pança subiu as escadarias do convento de Santo António e sentou-se na poltrona. Estava inchado e apreensivo com tamanha prova, desejoso de mandar e receoso de errar - não sabia por onde começar. Veio-lhe à cabeça a ideia de nomear um escudeiro, que bom jeito lhe fazia, mas no seu pessoal nem valia a pena procurar, e fora do seu poiso não confiava em ninguém. Pensou contratar alguém, mas logo abandonou a ideia; se o ministro jota fusco tinha sido despachado por menos; ele, mesmo com mais créditos, não poderia arriscar chumbo nesta etapa. Nisto, bateu-lhe à porta o ministro das-obras-tortas; vinha dizer-lhe que os buracos nas obras novas já tinham sido remendados, e que era preciso anunciar o feito, ao que ele replicou com um “alto lá, Obras-tortas, não nos faças passar mais vergonhas, deixa ao menos passar o Inverno, e reza para que ele não passe por ti”.
                                                                                   Miguel Saavedra

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