15 de janeiro de 2019

Onde se põe em letra uma conversa de jardineiros

Estava o mestre-jardineiro, e a sua ajudante, a preparar a terra para receber os primeiros amores-perfeitos quando se aproximou uma almeida com a sua carreta.
- Bons dias, colegas.
- Bom dia.
- Bom dia.
- O jardim da coroa está mui desleixado…- atirou a almeida
- Não tendes folhas para apanhar? – respondeu o mestre-jardineiro.
- Ai! Não me faleis assim… Não vos mostreis tão aziados com esta vossa pobre colega – respondeu a almeida.
- Desandai…E deixai trabalhar quem muito trabalho tem para fazer – atirou o mestre-jardineiro
- Sim, tendes muito que fazer para fazer disto um jardim …- retorquiu a almeida.
- E tu tendes muita folha para apanhar por essas ruas e passeios – replicou a jardineira.
- O tempo encurta a minha empreitada, já vós não tendes a mesma sorte – replicou a almeida.
- Cada um sabe de si e Deus de nós todos – retorquiu a jardineira.
- Tendes as pedras cheias de caruncho, as seves arruinadas, as árvores com ninhos das vespas asiáticas, as roseiras cheias de lagartas, os canteiros em grande desordem e cheios de ervas daninhas... – atirou a almeida.
- Cala-te! Sabeis bem quem é o responsável de tal desordem…Sabeis bem que não temos quem nos oriente – afirmou o mestre-jardineiro -; e prosseguiu: - agora, entregou-nos a um mancebo demasiado jovem para saber o que quer, que nunca pegou numa enxada, nem sabe distinguir um amor-perfeito de um malmequer. 
- O Príncipe tem pecado muito… Deixou-se rodear por muita espécie que não dá frutos, e não tem suprimido os ramos parasitas para que os outros deem frutos... – afirmou a almeida.
- Já chega dessa conversa…- afirmou o mestre-jardineiro.
- Mudemos, então, de assunto – atirou a almeida. Vistes passar a primeira-dama? E prosseguiu: - saiu, há bocado, do convento, e logo a seguir saiu o padre Vaz, deve ter ido ao confessionário…
- Vi, sim – anuiu a jardineira. Nem a reconhecia, pareceu-me muito atormentada.
- Parece mirrada – afirmou a almeida.
- Estará doente? – perguntou a jardineira.
- De desgostos, ouvi dizer… Ai, cala-te boca – rematou a almeida.
- Pobre senhora – exclamou a jardineira.
- Parece desorientada; por onde passa, proclama, sem rodeios, seus males... – contou a almeida.
- Credo! Livrai-nos, Senhor, de desaforos, maus-olhados e outros que tais – afirmou a jardineira.
- A quem o dizes, colega! – rematou a almeida.
- Sabes quem passou por aqui, ontem? perguntou a jardineira.
- Conta-me, conta-me …rogou a almeida.  
- A marquesa! Ao tempo que não a via. Olha, nem a conhecia! Pareceu-me acabrunhada. Disseram-me que esteve de baixa, com a maleita do abatimento, coitada – contou a jardineira.
- Não tenho pena dela – afirmou a almeida. Pensam que, por ser fidalgas, nem o vento lhes toca, mas toca! Quando perdem o pé caem como as outras – afiançou a almeida.
- Há gente que prega o jejum, mas gosta de comer à grande e variado – rematou o mestre-jardineiro. Cala-te boca.
                                                                                            Miguel Saavedra

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