2 de abril de 2020

Onde se dá conta da conversa da almeida com jardineiros sobre o derrube da marquesa

- Bons dias, colegas – atirou a almeida, ao passar pelos dois jardineiros que tiravam as ervas daninhas dos malfeitos canteiros da praça principal.
- Bom-dia – respondeu a jardineira.
- Bom dia – respondeu o chefe-jardineiro. 
- Já sabeis do novo escândalo que rebentou na corte? – perguntou a almeida.
- Ouvimos dizer qualquer coisa mas nem queremos acreditar – respondeu a jardineira. E prosseguiu: - eram tão próximos…; mas dizem que ela andava feita com o escrivão-mor para tramar o príncipe; e ele, vendo que tudo lhe ia de través, zás.
- Já vi que já emprenhastes pelos ouvidos com versão do escudeiro-mor – afirmou a almeida.
- Então,..? – atirou a jardineira.
- Se sabeis a verdade contai-a – instou o chefe-jardineiro. 
- Andais muito mal informados… Não sabeis do longo enredo de saias e ciúmes que se instalou há muito na corte? – perguntou a almeida.
- Isso é novidade velha – retrocou a jardineira.
- É velha mas só agora deu sentença – afirmou a almeida.
- Pensava que essa novela já não fazia peçonha a ninguém – afirmou a jardineira.
- Mas fazia! E fez tanta que a legítima, que faz da vergonha recreio, passou-se e exigiu a saída da marquesa - afiançou a almeida.
- E o Príncipe teve esse descoco? – perguntou a jardineira.
- Foi obrigado, colega; bem sabeis que ciúme na cabeça de mulher é drama que dá ruptura ou tragédia – afiançou a almeida. 
- Foi obrigado porque quis, porque não sabe temperar a ruindade – retornou a jardineira.
- Não te adiantes na língua que eu não quero cá problemas. Se correram com o escrivão-mor, melhor correm connosco. Se espírito travesso do escudeiro-mor passa por aqui, ou ouve alguns zunzuns, estamos despachados – afirmou o chefe-jardineiro. 
- Descansai, colegas; o escudeiro anda entretido a testar o vírus – assegurou a almeida.
- O nosso Soberano anda sempre metido em brigas. Ora numa brincadeira de garotos, ora num folhetim de rabo-de-saia – afirmou a jardineira.
- É verdade, colega; nunca vi uma criatura sob a forma de homem que revelasse tão feroz interesse em desgraçar vida doutrem – anuiu a almeida.
- Mas digo-vos, porque já o ouvi a muita gente, a devassidão é tirania que já ocasionou a queda de muitos reis – afirmou o chefe-jardineiro.
- Não sou letrada, mas sempre vos digo: o Príncipe não devia dar ouvidos à legitima – é uma desbocada que só traz desordem ao reino – afirmou a jardineira. 
- Mas deu, colega – afiançou a almeida.
- Mas desculpai-me, colega; ainda me custa acreditar nessa escusa. Se a novela era longa e conhecida, e se os reis e os príncipes sempre tiveram amantes - damas da rainha, cantoras líricas, senhoras da alta burguesia e até mulheres do povo -, porquê agora? E desta forma? - Perguntou a jardineira.
- Pois…, mas eram outros tempos... – retrocou a almeida.
- Eram outros tempos mas também o é nestes tempos – retrocou a jardineira. E acrescentou: - - sabeis bem o que se passa na corte dos nossos vizinhos…
- Sei, pois… - confirmou a almeida.
- Então, sabeis que o rei sempre teve amantes, e ainda as tem, mesmo com os pés a cova (Deus lhe dê juizinho). Mas a rainha Sofia deixou-o andar, e sempre se comportou como uma grande Senhora - afirmou a jardineira.
- É outra nobreza, colega – disse a almeida.
- É uma nobreza a sério, quereis dizer - retrocou a jardineira -; onde a rainha sabe ser Rainha. Sabe, como o caracol, carregar a coroa e a corte às costas, para poder esconder a cabeça e os cornos.
- Ai colega, não sei como sois tão liberal; eu não tinha estômago para tal… – retorquiu a almeida.
- Se a coisa não é recente já se devia ter habituado – afirmou a jardineira. 
- Mas parece que nunca se habituou – retrocou a almeida.
- Uma mulher ou é capaz de dar assistência ao homem ou não é; se não é… - afirmou a jardineira.
- Ai mulher! Estais tão liberal…- exclamou a almeida.
- Olha, colega, tomara eu que o meu homem, em vez de me estar sempre a procurar me desse descanso, que é o que o corpo me pede quando chego a casa moída, e desquadrilhada dos ossos, depois de um dia inteiro derreada a cavar e a sachar.
- Pois, colega, mas cada uma é como cada qual – afirmou a almeida.
- A fornicação é muito bonita mas é para quem não cansa o corpo, não é para mim, que já não tenho apetite de dar ao rabo – retrocou a jardineira.
- Bem sabeis, colega, que Deus deu chifres curtos à vaca maldosa; mas deixou sem chifres a muito maldosa – afirmou a almeida.
- Olha, juízo e vergonha é o que faz falta  a muita gente – rematou a jardineira.

                                                                                          Miguel Saavedra

1 comentário:

  1. Já estava á espera deste episódio da novela. No fim do mandato se editarem o livro, sou o primeiro a comprar e com pedido de autografo ao autor, que desconheço. No mandato do Narciso Mota, tínhamos o NOBRE POVO que também escrevia com muita sátira. Volta NOBRE POVO.

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