5 de novembro de 2022

Onde se dá conta da mui singela cerimónia que o Pança fez ao busto

Aos três dias do corrente mês, o Pança, governador do mui laborioso, endinheirado e imodesto condado das Meirinhas, cerimoniou a colocação, no mais mal-parecido espaço do seu condado, de um busto  a um ilustre meirinhense, ainda vivo, de muita valia e de muita renda, obtida na exploração e no açambarcamento de barro. 



Para a cerimónia, o Pança convidou a governadora da mui rica região da Estremadura e províncias adjacentes, mulher de boas letras e mui nobre geração, caída em desgraça pela sua fraca aceitação popular mas em mui boa hora recuperada para estas lides pelo Primeiro do Reino; convidou o profeta do Pedro, criatura da linhagem dos Panças, cordato, bom animador de festas mas de fraca presença; convidou, como era obrigatório, o homenageado, que assistiu desconsolado à cerimónia; e convidou, também, o mestre-de-artes que moldou o busto, e meia dúzia de outros senhores e outras pessoas mui principais que por amizade ou obrigação marcaram presença. 

O Pança foi mui descuidado e infeliz na solenidade, na ordem e no regimento da cerimónia, que, no lugar de homenagear, desmereceu a honra e os propósitos devidos a tão ilustre e grandessíssima figura. Deixou a todos admirados com cousa tão singela e tão mal ajambrada, sem mestre-de-cerimónias e sem mordomo que ordenasse as praxes da cortesia e do cerimonial. O nosso Reverendíssimo Bispo não esteve presente, nem outro capelão, no seu lugar, celebrou missa ou abençoou o busto; ninguém tocou "A Portuguesa" ou o "Hino da Carta"; a nossa Guarda não desfilou nem marcou presença; os nossos Bombeiros e os nossos Escuteiros foram ignorados; e até as altas figuras do protocolo (D. Diogo, o Comendador, os Procuradores, etc.) foram dispensadas. 

Houve discursos mas era melhor que não tivesse havido. O descomedido Pança discorreu, com a pompa que se lhe conhece, uma enfiada de preâmbulos, agradecimentos, sentenças e pedidos; engasgou-se nos verbos e derrapou nas vírgulas, mas acabou inchado. O profeta Pedro aproveitou o momento para estender e afinar a ladainha bajuladora – nem o busto lhe prestou atenção. Só a Governadora, pessoa de boas letras, boa condição e bom conselho, falou de forma serena e apropriada. 

A cerimónia terminou como começou: deslaçada; sem tocares e sem danças, nem cousa alguma que desse prazer. Consta que no final o busto derramou uma ou duas lágrimas ao sentir que ficava ali abandonado, às escuras, à chuva, ao pó e à farta poluição, sem uma campânula que o protegesse de tanta moléstia. O homenageado, homem de bom coração e de bem (se tal título se pode dar a um açambarcador), ainda pensou levá-lo consigo…

“mas em casa não me eterniza”, pensou e desistiu!

Miguel Saavedra

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