27 de abril de 2019

O que disse Rui Correia no jantar do Farpas

*convidados do Farpas Pombalinas no jantar-debate do nosso 11º aniversário, sob o tema "Tudo o que se passa no onde vivemos, é em nós que se passa"
"Paul Auster conta-nos em "The invention of solitude" (1982), como foi que sentiu a morte do seu pai. Durante toda a vida, o pai tinha vivido uma vida inteira de ausência e foi mesmo isso o que mais surpreendeu e feriu o escritor; mais do que propriamente aquele inesperado desaparecimento físico:
“Aquilo que me perturbou foi algo diferente, algo que nem se relacionava com a morte ou a minha reacção a ela: foi a consciência de que o meu pai não deixara quaisquer vestígios. Não tinha mulher, nenhuma família dependia dele, ninguém cuja vida fosse alterada pela sua ausência. Um breve momento de choque, talvez, por parte de alguns amigos dispersos, moderada tanto pelo carácter caprichoso da morte como pela morte de um amigo, seguida de um curto período de tristeza, e depois nada.
Eventualmente, seria como se ele nem tivesse vivido alguma vez. Ainda antes da sua morte ele tinha estado ausente, e já há muitos anos que as pessoas que lhe eram mais próximas haviam aceitado esta ausência, considerando-a uma qualidade fundamental da sua existência.”
O escritor decide então recuperar a vida do homem que era o seu pai, uma vida sem vestígios e sem futuro.
Sem mais elaboração, esta imposição de um desaparecimento sem memória, resultou da leitura lenta e repetida deste parágrafo, numa restaurada Ribeira do Porto em frente a um Douro fresco e nocturno, no intervalo de um colóquio científico sobre património, sua conservação e valorização. Nele, muito se falou de "memória" como uma moeda sem valor facial, falou-se da "conservação" como se se tratasse de uma nova e repudiável forma de embalsamamento, peritos chamaram "parques temáticos" às recuperações de centros históricos, defendeu-se a construção em altura, apelidando a outra de "predatória", disse-se o pior do conceito de património imaterial, enfim, um viveiro bem nutrido de gente realmente competente e interessada em pensar.
De um recanto da Universidade do Porto apareceu um professor de filosofia que, do que eu lhe percebi, enquadrou rapidamente o fenómeno do desaparecimento, da supressão ou brevidade da memória, como um elemento inseparável da evolução humana. Depois de todos os desacordos, apenas a ideia de "morte" conseguia unir os patrimonialistas presentes.
Numa época em que tudo parece ser património a preservar, dali resultava, ao menos em efígie, esta perspectiva inesperada de ser necessário rever toda a matéria aprendida nos bancos de escola, para realmente saber o que significa hoje a palavra "património".
A escassez que resulta da amnésia histórica é já hoje por todos sentida, mesmo sem o sabermos. No ofício de historiador a que, por vezes, me entrego, pude já testemunhar que uma única mão incauta, algures numa década passada, pode anular a presença de centenas de vidas; como se não tivessem existido. É quase sempre um livro velho que se destrói, umas caixas velhas com papéis que se queimam, uns arquivos mortos de humidade que vão para o lixo, quase sempre por falta de espaço; gestos anónimos que têm depois poderosa repercussão. Apagam-se registos. Por falta de espaço. Se não temos espaço para todos os registos e tudo é registo, o que deve conservar-se, então? E, sobretudo, conservar para quê, para quem? Definir o que é de conservar não corresponde a uma representação privativa, ou pior ainda: culta, do que deve ser memorável e honorável? E o que resta, tudo o mais, morre?
A morte equivale a um risco de espaço em falta. Nada habita mais uma comunidade do que o seu passado e o assombro da sua precariedade. Todo o futuro, individual e colectivo, depende da relação que se preserve com a memória. Mas qual é a jurisdição da memória?
Quando visitei o hotel da Serreta na ilha Terceira, fi-lo clandestinamente. Uma velha corrente, timidamente proíbe, hoje, a entrada aos menos metediços. O hotel é pequeno, mas robusto. O seu interior encontra-se totalmente vandalizado. Cada passo se faz sobre um mar de vidro espalhado no chão. Já nada resta de mobiliário, a não ser vagas reminiscências de reposteiros aveludados, uns furtivos elevadores enferrujados para içar a comida ao salão e uma enorme lareira de granito altivo. Do edifício, do seu fulgor de anos setenta, sobrevive ainda a sua arquitectura, (moderna e vencida pelo estupro), bem como
uma vista resplandecente sobre o mar, um mar oceânico, atlântico, autêntico. Toda esta decadência não abateu a soberania que ressuma daquelas paredes. Elas escondem histórias. Aqui se reuniram em 15 de Dezembro de 1971, os presidentes Nixon e Georges Pompidou, tendo por anfitrião Marcelo Caetano. Por estes corredores caminhou, acelerada, uma liça presidencial e a voz rouca e arrastada de Henry Kissinger. A visita à ilha marcou também a primeira viagem presidencial do Concorde número 001. Altaneiro, Pompidou organizou uma visita surpresa à sua reluzente e orgulhosa aeronave. Nixon lamentou que os Estados Unidos não integrassem o programa Concorde. “”It’s a big success””, aplaudiu, então. De tudo isto restam notícias e uma fotografia. O hotel vai morrendo, desde então. É uma história por inteirar.
Há uns anos o meu amigo Mário Tavares publicou um livro que, neste contexto gostaria de invocar. É um livro sobre os nove fuzilamentos napoleónicos que tiveram lugar nas Caldas da Rainha em 1808. Mário Tavares é um historiador muito peculiar. É um velho rato de biblioteca, que conhece os cantos à casa, acessíveis apenas a um dono de uma erudição discreta e potente como a sua. O seu livro colocou-me um desafio enternecedor. Gostaria de partilhar alguns dos duelos que este seu livro me colocou. Trata-se de um pequeno livro que representa, em meu entender, tudo o que a grande história deve ser: um resgate e um desconforto.
Em primeiro lugar ele fala-nos de morte. E não me refiro aos fuzilamentos. Refiro-me ao facto muito trivial de se tratar de um testemunho que regressa ao mundo. Este livro é um testemunho ressuscitado. Resgatado da amnésia colectiva. Fora publicado algures no início do século XX e depois desapareceu alhures entre as páginas de um alfarrábio. Um esquife de papel. De nada serve um texto se não houver quem o leia. De nada serve um livro se ninguém o abre. Nesse caso, o autor, vida e obra, morrem. Com a morte de um texto, morre também um testemunho. Com a morte de um testemunho, morrem pessoas, morrem vidas inteiras. Manoel de Sá Mattos, cirurgião é a vida extraviada que Mário Tavares reencarnou. Este livro é, pois, um acto de resgate. O que o conquistou das sombras foi a cirurgia luminosa do Dr. Mário Tavares.
E resgatou-o porque este testemunho merece ser relido. Regressa assim ao nosso convívio depois de uma hibernação, interrompida por mão humana.
O livro é, também, um exercício de desconforto. E talvez seja este o factor que mais alvoroçou a curiosidade do Dr. Mário Tavares. Estamos em 1808. Portugal é traumaticamente invadido. A Corte ausentara-se para o Brasil em Novembro e 1807, carreada em oito naus, três fragatas, três brigues e duas escunas. Tudo a abarrotar de pessoas, bens, medos e lágrimas. E, no entanto, este furor militar que se abate sobre Portugal representa para muitos uma oportunidade civilizacional. Com essa invasão chegam a Portugal os grandíloquos princípios do liberalismo, nesta época ainda eivados de uma natural limpidez teórica. Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Rousseau, Voltaire, Montaigne, Diderot. Textos animados por uma convicção pela qual o mundo poderia ser construído, com base jurídica, numa ordem justa; transformando o direito num objecto de beleza, uma beleza responsável por definir postulados que se afirmem guardiões dessa ordem justa.
Habitando um universo de intoleráveis desigualdades sociais, de desprezo absoluto pelos mais elementares direitos do Homem, aqueles que a Declaração de 26 de Agosto de 1789 proclamara. Um reino onde o nepotismo e a corrupção depravavam a sanidade do sistema social; um país aonde os ecos das revoluções liberais chegavam como luzes de progresso que tardavam em se acender.
A presença em solo português de tropas que transportavam nas suas mochilas um novo quadro de valores civilizacionais, valores que haveriam de mudar a face de toda a existência humana, era aguardada por muitos portugueses com uma impaciência quase imaculada.
Mas... Seria essa impaciência patriótica? O futuro do país dependente de uma turba de arruaceiros violentos e desordeiros, liderados por um escol elitista de oficiais conscientes da sua missão histórica, mas sem o menor rebuço em tolerar entre as suas fileiras as mais temíveis infâmias?
Quem nesta sala estaria hoje disposto a aceitar uma coisa dessas? Quem, apenas para que as suas ideias vingassem, aceitaria ver o seu país invadido por estranhos rufias, de armas em punho? Quem os apoiaria?
Como chamar patriota a quem aceite ver os seus compatriotas violentados por tropas estrangeiras?
Como poderiam os mais informados, justamente os mais informados dos cidadãos, ignorar que chegara a oportunidade excepcional de acabar com a secular e infamante barreira de sangue que discriminava um cidadão de outro?
O livro fala-nos de um português que tomou partido; tomou partido pelas forças invasoras do seu país. O seu depoimento é o de alguém que ininterruptamente se sente escrutinado pela história. Em cada página ele nos convida a perceber porque tomou este partido. Será má consciência ou um indefectível proselitismo liberal?
Pouco importa, na verdade. Em história, tudo é contexto. Mas na vida real, o contexto impõe que se tome partido. Este livro fala-nos de um homem que tomou partido. Um homem que tenta explicar o inexplicável. Aceitar o inaceitável. Defender o indefensável. E, concordando ou não, nós compreendemo-lo. Conhecemos o seu segredo. Partilhamos a sua aflição.
Cinco dias depois dos fuzilamentos das Caldas, Junot escrevia a Napoleão o seguinte:
“Lisboa 14 de Fevereiro de 1808
A Sua Majestade
Tenho a honra de comunicar a V. M. que nos primeiros dias de Fevereiro, 100 soldados franceses doentes que se dirigiam ao hospital das Caldas foram insultados por alguns portugueses aos quais se juntou o Regimento de Infantaria de linha do Porto; não houve mortos, apenas alguns feridos. Enviei imediatamente ao local o General Loison com ordens para cumprir o decreto que segue em anexo, depois de apurar com exactidão a verdade dos factos; este General comunicou-me hoje que o regimento foi licenciado e os seus oficiais e soldados mandados para suas casas sob a vigilância das autoridades civis e militares e que a comissão militar nomeada ad hoc condenou à morte 15 indivíduos dos quais foram executados 9, pois os outros andam fugidos.
Este terrível exemplo ensinará aos portugueses o que devem recear quando ousarem insultar os soldados franceses.”
A utilidade do historiador resume-se a tentar perceber. Idealmente nem a história devia servir para criar pontes para o presente ou preparar o futuro. A história foi. Tentar perceber o que foi sem outras demandas é, contudo, tarefa impossível. Atingir aquilo que os gregos designavam por epochê - a suspensão dos juízos. Será isso possível em história? Creio que não é. Existe história séria sem o tentar? Creio que não há. A participação do historiador no objecto narrado é irrefreável. Mas a consciência dessa insidiosa perversão do objecto histórico permite-nos, ao menos minimizar, os riscos de ingerência, os danos colaterais da deturpação.
Aquilo que mais me seduz nos estudos de história é a afirmação de todas as ambiguidades e incongruências do ser humano e das sociedades. Cada vez pressinto simpatizar mais com o que os melhores estudos de história vêm expondo acerca da vacuidade dos grandes sistemas organizadores e para tudo quanto representa a autenticidade falível de um evento, uma biografia ou de uma qualquer necropsia historiográfica. No mínimo, trata-se de argumentações de crescente efemeridade. Neste sentido, conceitos tradicionais como escola, contexto, conjuntura, marco, causa, efeito, estrutura, e muitos outros ainda em uso, são representações que vacilam e vêm acusando o toque. Num momento em que as ideologias assumem a precariedade como elemento, este sim, constituinte da sua formulação, não é espantoso que esta consciência se nos vulgarize.
O livro do Dr. Mário Tavares fala-nos deste desconforto. O de sabermos que o dilema impossível que se colocou a Manoel de Sá Mattos em 1808 pode muito bem ser o nosso, a cada dia que passa. Amanhã de manhã. Tomar partido. Todos compreendemos agora o que desejava um ardente liberal num mundo absolutista. Todos conjecturamos o que poderia significar ver o nosso país, amanhã de manhã, ocupado por tropas violentas estrangeiras. E, ao perceber o dilema, abandonamos o caminho fácil do julgamento. O historiador não é um árbitro. É, antes de tudo o mais, um escritor. O seu leitor acompanha de longe um enredo. O historiador desenrola novelos com o poder de intimar a memória.
O livro do Dr. Mário Tavares fala-nos da iminência da morte como uma inerência da memória. Somos apenas aquilo que outrem lembrará de nós. O futuro de tudo quanto dizemos e fazemos permanece apenas numa jurisdição que nos escapa. Somos, nesse sentido, a memória dos outros. Este estudo, mais do que comemorar uma efeméride, comemora uma efemeridade.
A intervenção cívica implica a reflexão sobre estas efemeridades. De que serve participar civicamente na nossa comunidade? O que significa este “onde” que todos somos a que se refere o grande Pessoa? Contexto? Tomar partido? A resposta encontra-se na decisão anti-patriótica ou fundamente consciente, legítima e corajosa de Manoel de Sá Mattos. Não há forma digna de viver sem viver com dignidade. E a dignidade constrói-se pela afirmação do que realmente pensamos e fazemos. Do que somos, enfim.
Só conheço três coisas por que vale a pena viver: ter a oportunidade de amar, ser merecedor da graça de ser amado por alguém e procurar não fazer mal a ninguém. Nada mais justifica esta exaustão permanente que é a vida.
O Farpas Pombalinas, ou melhor, as pessoas que são o Farpas, que o lêem, que o combatem, que o contrariam, que se irritam e que o defendem com unhas e dentes, representa esta pulsão pela vida e pela indomável imprescindibilidade de assumir uma causa, com e contra este ou aquele partido, com e contra o que esta ou aquela pessoa representam. Estar presente e ser presente feito.
A memória, essa cínica e hipócrita memória que em duas ou três gerações se encarregará de dissipar toda a nossa existência, a existência toda de todos quantos aqui estamos, obriga-nos ao dever de lutar por garantir que essas futuras pessoas, essas mesmas que de nós se não lembrarão, têm vida melhor por causa daquilo que por elas fazemos hoje. Nesse sentido, o combate pela memória é o que torna a nossa passagem pela terra tão virtuosa e indispensável. É a nossa função. Tentar perceber e, só depois, participar.
O que menos se suporta na morte é a sua completa falta de pudor. O franzino e quebradiço pudor é também o que nos impede de matar tanto quanto a morte o faz. Toda a memória é obra do pudor. Sem ele, sem ela, tudo é, todos somos, como o pai de um escritor: um mar de vidro espalhado no chão".
Rui Correia (professor, historiador, músico e ex-autarca nas Caldas da Rainha)

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