12 de maio de 2020

Onde se dá conta dos preparativos do Pança para o retiro

O último dia da semana despertou triste e molhado, propício à reclusão, à acomodação de mágoas e à digestão de ressentimentos. Mas quando o Pança chegou ofegante ao cimo da escadaria central, do Convento de Santo António, reparou que o Príncipe já estava no seu posto. Nesse instante, tremeu diante de ruim presságio. Lá fora, o céu alternava entre aguaceiros fortes e boas abertas; e do marasmo geral ressoava o cucar dos cucos na mata da rola, e o crocitar dos corvos, por cima do convento, que em seu grasnar anunciavam vingança.

O Pança, sabendo que o Príncipe ficaria ocupado, o dia todo, a fazer e a desfazer armadilhas, a reunir e a desagrupar rufias, a forjar e a desforjar agendas, resolveu ocupar o tempo em auscultações. Almoçou mal, porque o nó na garganta, que se tinha enrolado na véspera, obstruía-lhe o apetite. Durante a tarde, sentou-se para meditar um pouco – o que não fazia há anos. Veio-lhe à cabeça os companheiros que perdeu, os ódios e inimigos que gerou, as ameaças e os desgostos que se anunciam. E a meio da tarde começou a esvaziar o poiso – estava decidido a mudar de vida. Eis senão quando, é apanhado pelo Príncipe nos estranhos afazeres.

- Que estais fazendo, Pança?
- Estou a desaquartelar; a retirar os meus pertences…- afirmou o Pança
- Não tendes aqui nada, Pança, nem vontades – sentenciou o Príncipe.
- Ai tenho, tenho, Alteza. E preciso delas para as lides no meu condado - retorquiu o Pança.
- Oh! que vontade fraca – Exclamou o Príncipe. E acrescentou: - Sabeis bem que estamos os dois no mesmo barco.
- Pois,…; mas o navio abriu. Estamos naufragando! Prefiro morte seca que naufrágio sem velório – retorquiu o Pança.
- Por que sois tão temeroso? E tão desagradecido, Pança? Ou já vos aliastes aos desavindos para apressar o meu fim?
- Eu cá não sou temeroso, nem desagradecido. Tanto sei espedaçar um rufia como dar a camisa a um amigo - tenho na alma quatro dedos de enxúndia de cristão velho – afirmou o Pança. 
- Mas pensais com um quarto de bom senso e três quartos de cobardia – tornou o Príncipe.
- Não é cobardia, Alteza; não quero servir-vos de empecilho ou de bode-expiatório … - afirmou o Pança.
- Para que é essa pressa tanta, Pança? Para que é essa pressa tanta, Pança? – perguntou o Príncipe.
- Estou farto de desaforos, e de ameaças dos nossos, dos que o Senhor escorraçou. Com tanto odioso no ar, as coisas não estão para graças, e agora é que vamos para o caraças – afiançou o Pança. 
- Ouve-me com atenção, Pança amigo: estais enfeitiçado, caístes no encantamento de algum maltrapilho que te colocou na cabeça visão má. Precisais de voltar à Graça do Senhor. Tereis que tratar esse feitiço rapidamente – ordenou o Príncipe.
- Da alma sei eu tratar, Alteza; do que não sei tratar, e tenho medo, é da justiça – retorquiu o Pança.
- Deixai com quem sabe - comigo – as coisas de leis; e tratai da alma que bem precisais – tornou o Príncipe.
- A justiça é cega, Alteza; tão cega que meteu atrás das grades uma criatura muito mais poderosa que o Senhor. Desculpai-me! mas eu não confio em Vossa Mercê  - afirmou o Pança. (E pensou mas não disse: - naquela maldita reunião disseram que o Senhor não é douto em leis) 
- Sois mesmo vilão. Que tem isso com o que se passa aqui? – perguntou o Príncipe.
- Se Vossa Mercê se enfada, eu calo-me e deixo de dizer aquilo a que sou obrigado como leal escudeiro – afirmou o Pança.
- Dize o que quiseres — tornou o Príncipe — conquanto as tuas palavras se não dirijam a assustar-me.
- Digo que me parece que a minha estada neste castelo já é sem proveito. Que é meu cuidado livrar-me, enquanto é tempo, de cuidados maiores…- afirmou o Pança.
- És miserável e traidor, de origem simples para seres isso, e ruim demais para viveres – retornou o Príncipe.
- Para nós todos, Meu Senhor, o tempo ficou ruim demais, muito nublado – asseverou o Pança. 
- Não me anunciais senão perdas, nada mais. Dize, pois: perdi a coroa? – perguntou o Príncipe.
- Não sei, Alteza; vassalo não sabe nem pode julgar seu Rei – retorquiu o Pança.
- Alma despiedosa…- mimoseou o Príncipe.
- Agora o Senhor terá que por à prova os amigos que tanto o adulavam antes – afirmou o Pança.
- E vós me desampareis? – interpelou o Príncipe.
- Faltam-me forças para lutar contra os nossos – afirmou o Pança. Vai pelo nosso reino uma divisão desastrosa, como jamais se viu... E acrescentou: - Renego meus privilégios, abdico da pompa régia, e retiro-me para o meu condado…
- É o que fazeis, agora, Pança; quando mais preciso de ti? – perguntou o Príncipe. E acrescentou: - dei-vos tudo: boa renda, boa tensa, benefícios e privilégios, estatuto e pompa. E tive piedade de ti, não me poupei canseiras para ensinar-te bons modos, mas a tua raça não comporta nobres modos.
- Deu-me muita coisa, sim, Alteza; mas não fez de mim cavaleiro, e ministro, como prometido. E já não o fará - se alguma vez pensou fazê-lo – retorquiu o Pança.
- Sois muito desagradecido, Pança; e causa da minha desventura, também – afirmou o Príncipe.
- Vossa Mercê é que tem sido muito desagradecido comigo e com os seus, e mui amigo dos desumanos. Persistiu no enforcamento do rufia; enganou-se! O rufia não nasceu para a forca; e da corda do seu destino fez o nosso laço. Depois, cometeu o mesmo erro com a marquesa – afirmou o Pança.
- Sois fraco e traidor, Pança – afiançou o Príncipe. E acrescentou: - Grande é quem luta até por uma palha quando a honra está em jogo.
- Não consigo, Alteza. Tenho a alma atormentada e cheia de pecados – afirmou o Pança.
- Revesti-vos de coragem, Pança, vos peço. Estais desvairado, pressagiando desgraça? – Perguntou o Príncipe.
- Sinto que a nossa situação é pouco firme, mas enquanto for possível lavar nossas honras na corrente aduladora e as feições como a mascara do coração bondoso… - retorquiu o Pança.
- Receais que seremos ceifados antes do tempo? – Perguntou Príncipe. 
- É muito grande o meu medo… - afirmou o Pança.
- Temos que usar o medo religioso e o santo poder da salvação. Se está tudo perdido! Vamos rezar! Se está tudo perdido! Vamos rezar! – Rematou o Príncipe.
                                                                                           Miguel Saavedra

1 comentário:

  1. O Fiel Escudeiro de D. Diogo, como o mano novo está a cobiçar o trono do Convento, terá optado por se dedicar já a seu Condado e a sua rentável plantação da favas. Mas neste Reino da fantasia, o que hoje é verdade, amanhã pode já não o ser. A única verdade absoluta é que as FAVAS do Pança são um sucesso absoluto. Viva a Fava...Viva

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