20 de agosto de 2020

Onde se dá conta das dores do Pança com a investida do rufia

Com o Príncipe a-banhos, há muito que o Pança não se sentia tão feliz e importante, liberto dos mandos e das manias do Amo, e com todo o tempo para se dedicar ao seu condado e às festas da sua paróquia. Foi lindo vê-lo, feliz e contente, junto da sua gente, em grande devoção à N.ª Senhora das Dores (e que dores aí vêm!), nas celebrações eucarísticas, no arraial, nos festejos, junto do pároco, do povo e da fanfarra, sempre com grande solenidade, comunhão e entusiasmo cristão, derramando e recebendo lágrimas de prazer, com tão boa vontade e tão grande contentamento geral que parecia coisa milagrosa, tal era a ordem e a perfeição dos festejos. 

Mas enquanto o Pança celebrava junto dos seus; o rufia, que não nasceu para a forca, mas que o Pança e seu Amo quiserem enforcar, da corda do seu destino armava-lhes o laço com o engodo que os tem alimentado…

No dia seguinte, o Pança apresentou-se no Convento de Santo António, pelo romper da manhã, para mais uma semana de obediência ao Amo e de mando e desmando, inchado com tamanhos sucessos. Estava radiante, e nem o crocitar de um ou outro corvo nos beirais o afligiu, mas veio-lhe à memória, sem mais quê nem para quê, as preces do sacerdote na véspera, "Dai-nos a paz, dai-nos a paz, Senhor, vossa paz!" Sentou-se. Ligou a máquina.

– Foxx-se!, gritou logo de seguida, ou melhor, ganiu.
Depois, exclamou iracundo, de repente, dando sobre a mesa um soco com toda a força. E desabafou, “filho da mãe…”. Com isto, acordou o Príncipe, que logo o chamou:
- Dizei-me, Pança; tendes boas ou más novas?
- …só velhas e más, Alteza.
- Como…?
- O rufia, o ministro Jota, que jurou verdadeira lealdade, companheirismo e obediência, voltou a atacar, a atacar-me, com uma dúzia de perguntas sobre o fundo maneio; e quer que eu, este simples escudeiro, lhe vá responder na reunião em directo – afirmou, revoltado, o Pança.
- Esse peralta veio ao mundo com um certo descoco… - observou o Príncipe.
- Mas revela na traição grande mestria! – retrocou o Pança.
- Que quer ele saber? – perguntou o Príncipe.
- A história das facturas que entram e como sai o dinheiro do fundo… - respondeu o Pança.
- Então…?!, Isso é fácil de explicar...
- É?! … Olhe que não, olhe que não, ...porque pelo meio fazemos muitos truques…, e há muitas coisas em que não bate a bota com a perdigota – aclarou o Pança.
- Eu já tinha reparado que fazíeis algumas cousas mais solto do que devíeis, mas sois vós que tendes a responsabilidade pelo fundo… - lembrou, em tom de aviso, o Príncipe.
- Vossa Mercê pensa que é fácil justificar tanta saída de dinheiro, com coisas mui pouco honestas – afirmou o Pança, meio desolado.
- Sois mui cobiçoso, Pança; já devíeis saber que a cobiça é a raiz de todo o mal… - lembrou o Príncipe.
- Fala assim, o Senhor, porque está nesse pedestal, e ainda pensa que ninguém o derruba – retrocou o Pança, e acrescentou: - infelizmente, muitas vezes paga o justo pelo pecador.
- Neste caso, como bem ensina o versículo do salmista, “o pecador abriu um fosso e caiu no fosso que ele cavou!» - afirmou o Príncipe, com o seu sorrisozinho.
- O Senhor é muito desagradecido…Mas se Deus com sua infinita misericórdia nos não socorre… - observou o Pança.
- Desterra o medo, Pança; e faze das fraquezas forças, que a coisa vai como há-de ir, e nós por cá a gozar…
- Como, Alteza, se o peralta me afronta por todos os lados, com mil suspeitas? – perguntou o Pança.
- De cem coelhos, nunca se faz um cavalo; de cem suspeitas, nunca se faz uma prova – afiançou o Príncipe.
- Deus o ouça e o diabo seja surdo! Mas que eu estou muito receoso, estou..., para o nosso fim estar próximo só falta o rufia meter os malditos papeis nas mãos dos farpeiros.

                                                                                 Miguel Saavedra

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