19 de março de 2022

Felizes e mal pagos



Desde muito cedo que aprendi a conviver com a agricultura e com as hortas. Para lá do seu emprego, os meus pais sempre cultivaram largas extensões de terreno em pontos diversos da freguesia. Todavia até cuidar de catos e suculentas parece ser uma tarefa para a qual não terei sido talhado. Afinal, os conhecimentos não se partilham por osmose e, para saber do mester, é preciso trabalhá-lo e estudá-lo.

Verdades como esta são consideradas lapalissadas na maior parte do mundo civilizado. Porém, cá no nosso cantinho interior, à beira-mar encurralado, nada disso parece importar. 
Décadas de estudos em ciências da educação parecem ser meros apontamentos de rodapé nos currículos de especialistas, pois ser filho de docente parece ser condição suficiente para se perorar sobre tal matéria. E se ainda juntarmos umas digressões pelas escolas no âmbito do Parlamento dos Jovens bem como umas generalidades na Comissão Parlamentar de Educação, temos um cocktail que garante um conhecimento alargado sobre a matéria (com custos que descobriremos a curto prazo). 

Em Pombal, parece viver-se uma ficção. Publicam-se documentos encomendados a consultores, que apresentam pouca ligação à realidade local e, ultimamente, enveredou-se pelo caminho do "se pensar nisso com muita força, vai acontecer". No filme "Bruce, o Todo-Poderoso", a personagem principal consegue mudar o seu mundo apenas com a força de  vontade. Mas, até no mundo encantado do cinema se percebe que não é bem assim. Menos no tal concelho que resiste estoicamente à cultura do conhecimento, qual aldeia gaulesa do Astérix. Por lá, basta "querer muito", sobretudo se começarmos a "querer muito" desde o pré-escolar e a falar para as câmaras sobre o que é a felicidade (aguarda-se com expectativa o que dirá a Comissão Nacional de Proteção de Dados). 
Depois, levam-se esses testemunhos a conferências sobre "Happy schools", debitam-se banalidades durante 20 minutos perante nos novos gurus (resta saber quem os elevou a tal) e, no final, tudo se resume à defesa de uma Estratégia Nacional para a Felicidade e Bem-estar (onde estava tal autarca entre 2011 e 2015, quando o índice de pobreza em Portugal aumentou? Estaria a seguir uma expressão dos guias turísticos de Punta Cana? "Nosotros somos como los portugueses: j#didos pero felices") e que "os autarcas devem  ser facilitadores e não obstáculo". 

Basicamente, nesta lógica, os autarcas são meros relações públicas ou, se quisermos, uma espécie de Rainha de Inglaterra a quem basta ler um discurso, sobretudo se tiver sido soprado ao ouvido por esses grandes especialistas da Universidade Atlântica (com qualidade internacional reconhecida pelo Convento) ou por escribas de livros de auto-ajuda para quem o querer é suficiente para se ser feliz. Que o digam aquelas mães que se levantam todos os dias às 5 da manhã para ir fazer limpezas e que chegam a casa pelas 8 da noite... Ou as pessoas que vivem encurraladas entre um morro e um linha de caminho de ferro... Ou as pessoas que vivem sozinhas por essas aldeias deste interior/litoral... ou as mulheres que sofrem num mundo completamente dominado por homens... ou as pessoas que fogem de uma guerra que não poupa ninguém... estou ansioso por escutar,  amanhã, os testemunhos destas pessoas, na convenção da felicidade.

Luís Gonçalves 
professor

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