A meio
do ano, antes do período de descanso, o Príncipe decidiu avaliar o Estado da
Nação, a fim de prevenir incómodos no regresso. No final da passada semana,
antes de abandonar o trono, informou o Pança desse seu propósito; avisou-o que
se preparasse convenientemente, durante o fim-de-semana, para lhe prestar
contas, na primeira hora da semana seguinte, sobre as mui valorosas empreitadas
de lhe tinha destinado.
O Pança
não contava com esta incumbência de última hora. Depois de várias semanas em
grande azáfama, que o obrigaram a desdobrar-se como nunca, tinha reservado o
fim-de-semana para a família. Erro seu. Já deveria saber que escudeiro não tem
outro Senhor nem ócios. Mas o pior nem era abdicar da família, que coitada já
estava acostumada, era o muito trabalho que o esperava, toques e mais toques
que era preciso dar, relações e compromissos que era necessário revisitar e
avivar, depois de ter colocado as suas empreitadas em segundo plano para acudir
às emergências do Príncipe.
Quando o
Príncipe chegou, já o Pança estava no seu posto, e já tinha aproveitado o tempo
de espera para fazer os contactos que não tinha conseguido fazer durante o
fim-de-semana – sem sucesso. Assim que o Príncipe chegou ao cimo das escadas, avistou-o
logo, e comunicou-lhe que se apresentasse daí a cinco minutos. O Pança estava
nervoso; sabia bem que um exame político, com o Príncipe, é sempre
imprevisível, e para este tinha sido apanhado de surpresa.
Quando o
Pança se apresentou à porta do trono, o Príncipe ordenou de imediato:
-
Entrai, Pança; não temos tempo a perder…Sentai-vos.
- Com
licença, Alteza.
-
Dizei-me, Pança: como vai o reino? E as nossas relações com os condados
desalinhados?
- Bem,
muito bem, Majestade. Reina uma paz absoluta; mérito, com certeza, da sua
brilhante arte de governar. Oposição não tem, e a que tem serve, quanto muito,
para mostrar aos súbditos que há Rei neste reino. Os condados desalinhados estão
absorvidos, ou, pelo menos, em vias disso. Vossa Alteza tem, novamente, o poder
absoluto. Viva o Rei.
-
Deixai-vos desses adornos, Pança, são despropositados neste momento – avisou o
Príncipe.
-
Desculpai-me, Alteza; mas uma pessoa empolga-se com tanto sucesso, e não consegue
guardar sempre a descrição que a solenidade de certos momentos exige – anuiu o
Pança.
- Mas
dizei-me, Pança: como vão as coisas pelo condado de Roda?
- Melhor
do que alguma vez esperámos: o homem é nosso. Rompeu totalmente com o inimigo;
assunto encerrado, parece tão confortável connosco que nem dispêndio nos vai
exigir – afirmou, orgulhoso, o Pança.
- Bom
trabalho… E a Oeste: como estão as coisas? – perguntou o Príncipe.
- Mais
atrasadas, mas vem encaminhadas, Alteza. O Ramos é um rapaz de bem - se tal
título se pode dar a um adversário que nos combateu e derrotou. Se não fosse a
resistência da sua arisca escudeira, e as areias que o Conde-sem-condado e o
Manel têm metido na engrenagem, já estava totalmente do nosso lado – afiançou o
Pança.
- Não
digo menos, nem o contrário disso, Pança – respondeu o Príncipe -; mas dizei-me:
já conseguistes abafar a inspecção ao livro-de-contas?
- Ainda
não, Alteza – afirmou o Pança. E acrescentou: - esse é o grande empecilho à
pacificação …
- Mas
dizei-me, Pança: o relatório é assim tão comprometedor para nós?
- É,
Alteza. É como o de Abiúl, só que de maior grandeza. De tal forma que, se não
fosse por saber que todos estes descômodos andam muito anexos ao exercício da
política, aqui me deixara morrer de pura vergonha – afirmou, desgostoso, o
Pança.
-
Deixai-vos disso, e fazei das fraquezas, forças, Pança. Se em Abiúl – terra de
toiros e toureiros – conseguimos abafar a coisa; ali, melhor haveis de o conseguir
também – reforçou o Príncipe.
- Este
contratempo não é daqueles que se passa bem para detrás das costas, ou se cura
com uma prebenda avantajada, é uma rixazinha que poderá desgraçar-nos a
reputação… - afirmou o Pança.
- Fazei como em Abiúl – ordenou o Príncipe, e acrescentou: - Sabeis, com certeza, arranjar
maneira de meter o relatório na gaveta ou fazê-lo desaparecer.
- Claro,
Alteza; temos que arranjar uma forma de o fazer desaparecer. Na última reunião
conseguimos arregimentar a nossa malta mais influente (o Manel, o Ferrador e
C.ª) e abafámos aquilo. Mas a coisa não está fácil, mesmo contando com a boa
vontade do Ramos…
- Mas
ele está, ou não está, connosco? Perguntou, meio irritado, o Príncipe.
- Está,
Alteza; mas a estrada a percorrer é de via única – não cabem lá dois cavalos. O
Conde-sem-condado quer recuperar o condado, ainda não percebeu que tem que
abrir caminho…O Ramos sabe que se perder a face abre caminho ao Conde-sem-condado,
ou a outro dos nossos.
- Costuma-se
dizer, Pança, que cada qual é artífice da sua ventura. O Conde ficou sem
condado, coitado, porque tem uma inclinação, que lhe vem de haver sido abastado
no tempo da sua mocidade, que o leva a ser liberal e gastador. Foi pelo caminho
mais fácil: seguiu a (des)governação do Manel, que eu já tinha denunciado há
vários anos, mas não se deu conta que não possuía os dotes dissimuladores dele
– afirmou o Príncipe.
- Tendes razão, Alteza; é sempre assim: para os vencidos muda-se o bem em mal e o mal em
pior – atestou o Pança.
- Há
mais algum problema no reino, Pança? - perguntou o Príncipe.
- Em
Abizeude as coisas podem descambar. A governanta não é de confiança: muda de
camisola ao ritmo que nós mudamos de humor. Agora anda alinhada com o inimigo
(ou amigo, veio de lá): aprovou-lhe as propostas todas. Diz-se que está
revoltada porque Vossa Mercê ainda não cumpriu o compromisso que assumiu com
ela – afirmou o Pança.
- Deixai
esse assunto comigo… Conheceis mais desavenças que urge conter? - perguntou o
Príncipe.
- No
condado de Vermoim as coisas também podem azedar. Como o Senhor bem sabe, o
beato Ilídio não nasceu para ser desobedecido; e, naquele seu jeito
languinhento, quer todos em concórdia consigo. Resultado? O gordo sente-se mais
desgovernado do que governador – explicou o Pança.
- Aí,
controla-se bem a coisa: fazemo-los passar pelo confessionário…- concluiu o
Príncipe.
Miguel Saavedra