O
esgotamento do Príncipe é tão evidente que até para distribuir as comendas do
dia do Principado precisou dos alvitres do Pança. Chamou-o:
- O que
desejais, Alteza? – acudiu o Pança.
- Como
sabeis; estamos em vésperas do dia do Principado, e ainda não sei quem
agraciar…-principiou o Príncipe.
- Pois,…O
Senhor sempre foi mui deslembrado para a ventura alheia…- atalhou o Pança.
- Já
estais a desvairar, Pança; mas adiante, que tenho pressa. Indicai-me cinquenta
justos que mereçam comenda.
- Justos
segundo a medida divina ou segundo a medida humana? – perguntou o Pança.
- Boa
pergunta - estais mui arguto! – notou o Príncipe.
- Foi
bom haver sido eu por vós achado, senão o que seria deste pobre Principado – tufou
o Pança.
- Não
vos esticais, Pança – avisou o Príncipe; e prosseguiu a prosa: - segundo a
primeira, que é a que mais interessa.
-
Somente segundo a primeira é mui dificultoso inventar cinquenta justos num
Principado onde a virtude não medra - afirmou o Pança -; a não ser que se junte
um ou outro vidente, um ou outro adivinho e um ou outro charlatão.
- Fazei
como achardes melhor – anuiu o Príncipe -; que adiante separarei.
- Estou
pouco imaginoso, Alteza; trago a cabeça cheia com os meus muitos afazeres –
afirmou o Pança. E prosseguiu: - devemos agraciar quem se distinguiu; o
problema é que nesta terra ninguém se distingue (para cima – pensou, mas não
disse).
-
Deixai-vos de considerandos, Pança. Nomes, nomes… - insistiu o Príncipe.
- Vossa
Mercê pode agraciar o Almirante, o padre do “Pão de Deus”, o estudante de
números do oeste…- sugeriu o Pança.
- O
Almirante já foi agraciado, e o padre do “Pão por Deus foi-nos roubado pelo
beato Ilídio…- retorquiu o Príncipe -; mas, sim: o estudante de números serve…
- Já
temos um…- assinalou o Pança. E acrescentou: - Vossa Mercê poderá também agraciar a
associação dos esquecidos...
- Essa serve…
Mas mais, Pança; mais…- suplicou o Príncipe - Estais pouco imaginativo. Falta-nos
criaturas ilustres, que engrandeçam esta mui nobre cerimónia.
- Dai-me
um entretanto, Alteza, para pensar alto, com os meus botões…
- Pensai,
Pensai, Pança; mas despachai-vos, que não falta muito tempo para a cerimónia –
avisou o Príncipe.
- Se me
pedíeis que seja imaginoso, que também o sei ser, quando mo pedem ou mo deixam
ser; pergunto a mim mesmo (e perdoai-me se for precipitação): por que não agraciar
os farpeiros?
- Endoidaste,
Pança; ou eles já te deram a volta?
- O
Senhor é mesmo desagradecido…; eu só queria auxiliar Vossa Mercê, mas já vi que
me precipitei.
- Assim,
não ajudais nada, Pança; seria loucura tentar semelhante empresa! – afirmou o
Príncipe.
- Eu sei
que oferecer incenso a maldizentes, que se têm fartado
de chasquear as nossas misérias - eu que o diga, que tenho sido um mártir nas
mãos deles -, é fazer deles ídolos.
-
Contava que me alimentásseis os desejos, não que me importunásseis com extravagantes
toleimas – advertiu o Príncipe.
- Não
sei se é toleima…- retorquiu o Pança -; se já agraciamos radialistas sem
ouvintes e pasquim sem leitores, por que não agraciar estes que amiúde são indicados
para as comendas por súbditos bem letrados …
- Santo
Deus! Que estais dizendo, Pança? Querereis que eu entronize três Judas, sem
vergonha e sem temor, que nos têm infernizado a vida? - perguntou o Príncipe.
- Olhe que eles até têm andado comedidos! Se Vossa Mercê não lhes desse tanta
mecha, nas reuniões difundidas, não nos davam tantos desgostos…- retorquiu o
Pança.
- Seríeis um escudeiro mais confiável se me dissésseis que os
deveria mandar excomungar e condenar ao fogo – afirmou o Príncipe.
- Desculpai-me,
Alteza; que as minhas intenções sempre as dirijo para bons fins – retorquiu o
Pança.
- Cala-te,
Pança — tornou o Príncipe, com voz exaltada — cala-te, repito, e não digas blasfémias.
- Se
Vossa Mercê se enfada — retorquiu o Pança — eu calo-me e deixo de dar os meus alvitres.
- Às
vezes mais valeria cortar-te o pio - lembrou o Príncipe – mas não, agora; falai,
mas falai com tino - com proposições conformes à ordem estabelecida.
- Pedir
é fácil, difícil é ir ao agrado do Senhor. Mas, por minha fé, Deus e o Senhor
me perdoem este outro alvitre: por que não agracia, Vossa Mercê, a oposição? –
sugeriu perguntando o Pança.
- Endoidaste
de vez, Pança – afirmou, exaltado, o Príncipe.
- Bem
sei que não é gente justa – advertiu o Pança -, mas a comenda seria justa –
tanto têm sofrido, sem gemer nem mugir, com as bordoadas que o Senhor lhes tem
dado.
- À oposição
não se dá comendas, Pança.
- Por
que não?! Seria um prémio merecido: são uns verdadeiros mártires; e têm-nos
ajudado tanto ou mais que os nossos. Se o Senhor fosse piedoso, uma vez na
vida, dava-lhes esta alegria (que outra não terão – pensou só para si) - concluiu,
rogando, o Pança.
- Pança;
arrebita as orelhas e ouve-me bem ouvido: obedeces-me ou desterro-te
definitivamente para o teu condado – ameaçou o Príncipe, com voz irritada.
Miguel
Saavedra