"Paul Auster conta-nos em "The invention of solitude" (1982), como foi que sentiu a morte do seu pai. Durante toda a vida, o pai tinha vivido uma vida inteira de ausência e foi mesmo isso o que mais surpreendeu e feriu o escritor; mais do que propriamente aquele inesperado desaparecimento físico:
“Aquilo que me perturbou foi algo diferente, algo que nem se
relacionava com a morte ou a minha reacção a ela: foi a consciência de que o
meu pai não deixara quaisquer vestígios. Não tinha mulher, nenhuma família
dependia dele, ninguém cuja vida fosse alterada pela sua ausência. Um breve
momento de choque, talvez, por parte de alguns amigos dispersos, moderada tanto
pelo carácter caprichoso da morte como pela morte de um amigo, seguida de um
curto período de tristeza, e depois nada.
Eventualmente, seria como se ele nem tivesse vivido alguma
vez. Ainda antes da sua morte ele tinha estado ausente, e já há muitos anos que
as pessoas que lhe eram mais próximas haviam aceitado esta ausência,
considerando-a uma qualidade fundamental da sua existência.”
O escritor decide então recuperar a vida do homem que era o
seu pai, uma vida sem vestígios e sem futuro.
Sem mais elaboração, esta imposição de um desaparecimento
sem memória, resultou da leitura lenta e repetida deste parágrafo, numa
restaurada Ribeira do Porto em frente a um Douro fresco e nocturno, no
intervalo de um colóquio científico sobre património, sua conservação e
valorização. Nele, muito se falou de "memória" como uma moeda sem
valor facial, falou-se da "conservação" como se se tratasse de uma
nova e repudiável forma de embalsamamento, peritos chamaram "parques
temáticos" às recuperações de centros históricos, defendeu-se a construção
em altura, apelidando a outra de "predatória", disse-se o pior do
conceito de património imaterial, enfim, um viveiro bem nutrido de gente realmente
competente e interessada em pensar.
De um recanto da Universidade do Porto apareceu um professor
de filosofia que, do que eu lhe percebi, enquadrou rapidamente o fenómeno do
desaparecimento, da supressão ou brevidade da memória, como um elemento inseparável
da evolução humana. Depois de todos os desacordos, apenas a ideia de
"morte" conseguia unir os patrimonialistas presentes.
Numa época em que tudo parece ser património a preservar,
dali resultava, ao menos em efígie, esta perspectiva inesperada de ser
necessário rever toda a matéria aprendida nos bancos de escola, para realmente
saber o que significa hoje a palavra "património".
A escassez que resulta da amnésia histórica é já hoje por
todos sentida, mesmo sem o sabermos. No ofício de historiador a que, por vezes,
me entrego, pude já testemunhar que uma única mão incauta, algures numa década
passada, pode anular a presença de centenas de vidas; como se não tivessem
existido. É quase sempre um livro velho que se destrói, umas caixas velhas com
papéis que se queimam, uns arquivos mortos de humidade que vão para o lixo,
quase sempre por falta de espaço; gestos anónimos que têm depois poderosa
repercussão. Apagam-se registos. Por falta de espaço. Se não temos espaço para
todos os registos e tudo é registo, o que deve conservar-se, então? E,
sobretudo, conservar para quê, para quem? Definir o que é de conservar não
corresponde a uma representação privativa, ou pior ainda: culta, do que deve
ser memorável e honorável? E o que resta, tudo o mais, morre?
A morte equivale a um risco de espaço em falta. Nada habita
mais uma comunidade do que o seu passado e o assombro da sua precariedade. Todo
o futuro, individual e colectivo, depende da relação que se preserve com a
memória. Mas qual é a jurisdição da memória?
Quando visitei o hotel da Serreta na ilha Terceira, fi-lo
clandestinamente. Uma velha corrente, timidamente proíbe, hoje, a entrada aos
menos metediços. O hotel é pequeno, mas robusto. O seu interior encontra-se
totalmente vandalizado. Cada passo se faz sobre um mar de vidro espalhado no
chão. Já nada resta de mobiliário, a não ser vagas reminiscências de
reposteiros aveludados, uns furtivos elevadores enferrujados para içar a comida
ao salão e uma enorme lareira de granito altivo. Do edifício, do seu fulgor de
anos setenta, sobrevive ainda a sua arquitectura, (moderna e vencida pelo
estupro), bem como
uma vista resplandecente sobre o mar, um mar oceânico,
atlântico, autêntico. Toda esta decadência não abateu a soberania que ressuma
daquelas paredes. Elas escondem histórias. Aqui se reuniram em 15 de Dezembro
de 1971, os presidentes Nixon e Georges Pompidou, tendo por anfitrião Marcelo
Caetano. Por estes corredores caminhou, acelerada, uma liça presidencial e a
voz rouca e arrastada de Henry Kissinger. A visita à ilha marcou também a
primeira viagem presidencial do Concorde número 001. Altaneiro, Pompidou
organizou uma visita surpresa à sua reluzente e orgulhosa aeronave. Nixon
lamentou que os Estados Unidos não integrassem o programa Concorde. “”It’s a
big success””, aplaudiu, então. De tudo isto restam notícias e uma fotografia.
O hotel vai morrendo, desde então. É uma história por inteirar.
Há uns anos o meu amigo Mário Tavares publicou um livro que,
neste contexto gostaria de invocar. É um livro sobre os nove fuzilamentos
napoleónicos que tiveram lugar nas Caldas da Rainha em 1808. Mário Tavares é um
historiador muito peculiar. É um velho rato de biblioteca, que conhece os
cantos à casa, acessíveis apenas a um dono de uma erudição discreta e potente
como a sua. O seu livro colocou-me um desafio enternecedor. Gostaria de
partilhar alguns dos duelos que este seu livro me colocou. Trata-se de um
pequeno livro que representa, em meu entender, tudo o que a grande história
deve ser: um resgate e um desconforto.
Em primeiro lugar ele fala-nos de morte. E não me refiro aos
fuzilamentos. Refiro-me ao facto muito trivial de se tratar de um testemunho
que regressa ao mundo. Este livro é um testemunho ressuscitado. Resgatado da
amnésia colectiva. Fora publicado algures no início do século XX e depois
desapareceu alhures entre as páginas de um alfarrábio. Um esquife de papel. De
nada serve um texto se não houver quem o leia. De nada serve um livro se
ninguém o abre. Nesse caso, o autor, vida e obra, morrem. Com a morte de um
texto, morre também um testemunho. Com a morte de um testemunho, morrem
pessoas, morrem vidas inteiras. Manoel de Sá Mattos, cirurgião é a vida
extraviada que Mário Tavares reencarnou. Este livro é, pois, um acto de
resgate. O que o conquistou das sombras foi a cirurgia luminosa do Dr. Mário
Tavares.
E resgatou-o porque este testemunho merece ser relido.
Regressa assim ao nosso convívio depois de uma hibernação, interrompida por mão
humana.
O livro é, também, um exercício de desconforto. E talvez
seja este o factor que mais alvoroçou a curiosidade do Dr. Mário Tavares.
Estamos em 1808. Portugal é traumaticamente invadido. A Corte ausentara-se para
o Brasil em Novembro e 1807, carreada em oito naus, três fragatas, três brigues
e duas escunas. Tudo a abarrotar de pessoas, bens, medos e lágrimas. E, no
entanto, este furor militar que se abate sobre Portugal representa para muitos
uma oportunidade civilizacional. Com essa invasão chegam a Portugal os
grandíloquos princípios do liberalismo, nesta época ainda eivados de uma
natural limpidez teórica. Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Rousseau,
Voltaire, Montaigne, Diderot. Textos animados por uma convicção pela qual o
mundo poderia ser construído, com base jurídica, numa ordem justa;
transformando o direito num objecto de beleza, uma beleza responsável por
definir postulados que se afirmem guardiões dessa ordem justa.
Habitando um universo de intoleráveis desigualdades sociais,
de desprezo absoluto pelos mais elementares direitos do Homem, aqueles que a
Declaração de 26 de Agosto de 1789 proclamara. Um reino onde o nepotismo e a
corrupção depravavam a sanidade do sistema social; um país aonde os ecos das
revoluções liberais chegavam como luzes de progresso que tardavam em se
acender.
A presença em solo português de tropas que transportavam nas
suas mochilas um novo quadro de valores civilizacionais, valores que haveriam
de mudar a face de toda a existência humana, era aguardada por muitos
portugueses com uma impaciência quase imaculada.
Mas... Seria essa impaciência patriótica? O futuro do país
dependente de uma turba de arruaceiros violentos e desordeiros, liderados por
um escol elitista de oficiais conscientes da sua missão histórica, mas sem o
menor rebuço em tolerar entre as suas fileiras as mais temíveis infâmias?
Quem nesta sala estaria hoje disposto a aceitar uma coisa
dessas? Quem, apenas para que as suas ideias vingassem, aceitaria ver o seu
país invadido por estranhos rufias, de armas em punho? Quem os apoiaria?
Como chamar patriota a quem aceite ver os seus compatriotas
violentados por tropas estrangeiras?
Como poderiam os mais informados, justamente os mais
informados dos cidadãos, ignorar que chegara a oportunidade excepcional de
acabar com a secular e infamante barreira de sangue que discriminava um cidadão
de outro?
O livro fala-nos de um português que tomou partido; tomou
partido pelas forças invasoras do seu país. O seu depoimento é o de alguém que
ininterruptamente se sente escrutinado pela história. Em cada página ele nos
convida a perceber porque tomou este partido. Será má consciência ou um
indefectível proselitismo liberal?
Pouco importa, na verdade. Em história, tudo é contexto. Mas
na vida real, o contexto impõe que se tome partido. Este livro fala-nos de um
homem que tomou partido. Um homem que tenta explicar o inexplicável. Aceitar o
inaceitável. Defender o indefensável. E, concordando ou não, nós
compreendemo-lo. Conhecemos o seu segredo. Partilhamos a sua aflição.
Cinco dias depois dos fuzilamentos das Caldas, Junot
escrevia a Napoleão o seguinte:
“Lisboa 14 de Fevereiro de 1808
A Sua Majestade
Tenho a honra de comunicar a V. M. que nos primeiros dias de
Fevereiro, 100 soldados franceses doentes que se dirigiam ao hospital das
Caldas foram insultados por alguns portugueses aos quais se juntou o Regimento
de Infantaria de linha do Porto; não houve mortos, apenas alguns feridos.
Enviei imediatamente ao local o General Loison com ordens para cumprir o
decreto que segue em anexo, depois de apurar com exactidão a verdade dos
factos; este General comunicou-me hoje que o regimento foi licenciado e os seus
oficiais e soldados mandados para suas casas sob a vigilância das autoridades
civis e militares e que a comissão militar nomeada ad hoc condenou à morte 15
indivíduos dos quais foram executados 9, pois os outros andam fugidos.
Este terrível exemplo ensinará aos portugueses o que devem
recear quando ousarem insultar os soldados franceses.”
A utilidade do historiador resume-se a tentar perceber.
Idealmente nem a história devia servir para criar pontes para o presente ou
preparar o futuro. A história foi. Tentar perceber o que foi sem outras
demandas é, contudo, tarefa impossível. Atingir aquilo que os gregos designavam
por epochê - a suspensão dos juízos. Será isso possível em história? Creio que
não é. Existe história séria sem o tentar? Creio que não há. A participação do
historiador no objecto narrado é irrefreável. Mas a consciência dessa insidiosa
perversão do objecto histórico permite-nos, ao menos minimizar, os riscos de
ingerência, os danos colaterais da deturpação.
Aquilo que mais me seduz nos estudos de história é a
afirmação de todas as ambiguidades e incongruências do ser humano e das
sociedades. Cada vez pressinto simpatizar mais com o que os melhores estudos de
história vêm expondo acerca da vacuidade dos grandes sistemas organizadores e
para tudo quanto representa a autenticidade falível de um evento, uma biografia
ou de uma qualquer necropsia historiográfica. No mínimo, trata-se de
argumentações de crescente efemeridade. Neste sentido, conceitos tradicionais
como escola, contexto, conjuntura, marco, causa, efeito, estrutura, e muitos
outros ainda em uso, são representações que vacilam e vêm acusando o toque. Num
momento em que as ideologias assumem a precariedade como elemento, este sim,
constituinte da sua formulação, não é espantoso que esta consciência se nos
vulgarize.
O livro do Dr. Mário Tavares fala-nos deste desconforto. O
de sabermos que o dilema impossível que se colocou a Manoel de Sá Mattos em
1808 pode muito bem ser o nosso, a cada dia que passa. Amanhã de manhã. Tomar
partido. Todos compreendemos agora o que desejava um ardente liberal num mundo
absolutista. Todos conjecturamos o que poderia significar ver o nosso país,
amanhã de manhã, ocupado por tropas violentas estrangeiras. E, ao perceber o
dilema, abandonamos o caminho fácil do julgamento. O historiador não é um
árbitro. É, antes de tudo o mais, um escritor. O seu leitor acompanha de longe
um enredo. O historiador desenrola novelos com o poder de intimar a memória.
O livro do Dr. Mário Tavares fala-nos da iminência da morte como uma inerência da memória. Somos apenas aquilo que outrem lembrará de nós. O futuro de tudo quanto dizemos e fazemos permanece apenas numa jurisdição que nos escapa. Somos, nesse sentido, a memória dos outros. Este estudo, mais do que comemorar uma efeméride, comemora uma efemeridade.
A intervenção cívica implica a reflexão sobre estas efemeridades. De que serve participar civicamente na nossa comunidade? O que significa este “onde” que todos somos a que se refere o grande Pessoa? Contexto? Tomar partido? A resposta encontra-se na decisão anti-patriótica ou fundamente consciente, legítima e corajosa de Manoel de Sá Mattos. Não há forma digna de viver sem viver com dignidade. E a dignidade constrói-se pela afirmação do que realmente pensamos e fazemos. Do que somos, enfim.
Só conheço três coisas por que vale a pena viver: ter a oportunidade de amar, ser merecedor da graça de ser amado por alguém e procurar não fazer mal a ninguém. Nada mais justifica esta exaustão permanente que é a vida.
O Farpas Pombalinas, ou melhor, as pessoas que são o Farpas, que o lêem, que o combatem, que o contrariam, que se irritam e que o defendem com unhas e dentes, representa esta pulsão pela vida e pela indomável imprescindibilidade de assumir uma causa, com e contra este ou aquele partido, com e contra o que esta ou aquela pessoa representam. Estar presente e ser presente feito.
A memória, essa cínica e hipócrita memória que em duas ou três gerações se encarregará de dissipar toda a nossa existência, a existência toda de todos quantos aqui estamos, obriga-nos ao dever de lutar por garantir que essas futuras pessoas, essas mesmas que de nós se não lembrarão, têm vida melhor por causa daquilo que por elas fazemos hoje. Nesse sentido, o combate pela memória é o que torna a nossa passagem pela terra tão virtuosa e indispensável. É a nossa função. Tentar perceber e, só depois, participar.
O que menos se suporta na morte é a sua completa falta de pudor. O franzino e quebradiço pudor é também o que nos impede de matar tanto quanto a morte o faz. Toda a memória é obra do pudor. Sem ele, sem ela, tudo é, todos somos, como o pai de um escritor: um mar de vidro espalhado no chão".
Rui Correia (professor, historiador, músico e ex-autarca nas Caldas da Rainha)
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