Eis, um homem. Faleceu em 1969. Quarenta anos volvidos sobre o seu desaparecimento físico, a sua obra e personalidade continua mergulhada num profundo e lamentável esquecimento. Médico de formação e crítico literário, ensaísta com títulos tão determinantes como:Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda,Ensaios de Domingo. Colaborou em jornais tão imporantes como, Diabo, o Sol Nascente, Vértice e o Diário de Lisboa. Resistente anti-fascista. Membro da comissão central da organização de juventude do Movimento de Unidade Democrática (o MUD Juvenil). Organizadordo 1º e 2º Congresso Republicano de Aveiro ( 1957, 1969 ). O meu primeiro contacto, com a sua obra foi em Vermoil através da Biblioteca Itinerante da F. Calouste Gulbenkian, e desde aí nunca deixei de reler os seus escritos e ensaios literários. Mas, o seu escrito que mais me impressionou foi esta carta-testamento. Admirável. Aqui vos deixo....
Carta-testamento
Esta carta foi deixada por M. Sacramento em envelope fechado com a indicação «Para ser aberto quando eu morrer» e assinado o envelope com a indicação «Escrito em 7-4-1967»
Caramulo,
Pousada de S. Lourenço,
7 de Abril de 1967
Aos mais adiados...
Vai sendo tempo de escrever uma carta de despedida! A velha carcaça é já uma ruína nítida. A somar às cicatrizes das lesões pulmonares que tive, há bronquiectasias e zonas de enfisema do impossível fumador que sou, as quais hão-de vir a resultar num coração pulmonar. A tensão mínima já começa a ressentir-se disso. O rim deita vestígios acentuados de albumina e cilindros. E o estômago tem qualquer coisa que um destes dias hei-de averiguar... Como não posso nem devo emagrecer excessivamente — são os próprios colegas que mo dizem —, dado o perigo de reactivação das antigas lesões bacilares, o peso é também um contra. E, como deixar de fumar, nesta idade, além de ser um sacrifício inglório que me roubaria um dos poucos apegos concretos que ainda tenho à vida, seria levar-me a engordar ainda mais, o balanço é portanto muito nítido. Quantos anos? Depois dos cinquenta acaba-se, estou convencido. Mais erro, menos erro, a média deve ser essa.
Começo por isso a ter pressa de fazer umas tantas coisas que reservei para a fase final, quando a terrível batalha que travei na sobrevivência contra o fascismo me deixasse, à margem desta profissão cujas dificuldades e condicionamentos económicas, sociais e políticos liquidaram tantos dos meus sonhos, margem para isso. Espero roubar, sempre que possa, alguns dias à labuta e à engrenagem diária e isolar-me, como agora fiz, para escrever qualquer coisa de mais íntimo. Para o romance cíclico que trago há tantos anos na cabeça, não chegará o tempo, decerto. E é melhor assim, pois evito uma desilusão e sempre morrerei com o arzinho angustiado de vítima dum mau destino, o que é chique, como diria o Eça...
Antes de tudo, impõe-se, porém, que escreva estas singelas palavras. Quem pode afiançar-me que não vou acabar hemiplégico e afásico, como minha Mãe? Deixa aqui, então, o que depois não poderás!
Deixar cheira a testamento. E eu, que deixe, só tenho o corpo. Por mais que fizesse, por mais que me fizessem, disso é que nunca consegui ser espoliado! E, como é com ele que me avenho nas noites de insónia e nas porfias diárias, é justo que lhe dedique, ao menos, um pensamento em vida. E não o legue aos cães... Pois não equivaleria a isso estar a ver-me, daqui, de barba feita a posteriori, sapatos engraxados, fato de ver a Deus, a apresentar as minhas despedidas, muito formalizado, de dentro da cabine - especial? Como não tenciono ir para parte nenhuma, metam-me como eu estiver no caixote mais barato que encontrem e devolvam-me os restos à terra. A terra sabe lavar-se. E não há nada como um cadáver «limpo» para marcar um limite.
Se morresse em localidade com forno crematório, não desgostava disso, se não fosse caro. E, por falar em caro: não sei se a terra será o mais barato para o caso, - ó contradições do capitalismo! E, como isto de morrer também «custa» aos outros, há que prevê-lo. A família tem uma pirâmide egípcia em Ílhavo. Embora eu esteja farto de conhecer prisões em vida, como nessa altura quem terá de aguentar isso é «o outro», não me oponho a ir para lá, se for mais económico ou mais fácil de arrumar. Não faço questões nenhumas com a morte... Ela nega-me, e é tudo. A grande magana!
Não, o motivo fundamental desta carta é outro. Aceitei dialogar, nestes últimos tempos, com os católicos. Se tivesse nascido num país protestante ou árabe ou budista, tê-lo-ia feito com esses. Pois do que se tratava — se trata, ó morto-vivo!, ainda não acabaste! — era, é de dialogar com os progressistas e, sobretudo, com o povo, directa ou indirectamente. Não há-de faltar contudo — sempre assim foi, ó alminhas santas! — quem procure fazer sujeira com isso e aproveitar-se duma ambiguidade que surja para me denegrir a memória. Se a minha Mulher ainda estiver viva — ela tem sido boa companheira! Não haverá problemas com isso, estou convencido. E o mesmo se dará se os filhos estiverem atentos: eles têm carácter. Mas quem pode prever tudo? Não que eu faça grande questão do meu bom nome: estou-me nas tintas para ele, depois de morto. Mas, além dele pertencer aos meus companheiros de jornada. E, que diabo, se passei tantos maus bocados por eles, em vida, é porque considerei que era esse o meu destino. E um homem tem o direito de o defender, mesmo depois de morto!
Fica portanto entendido que sou ateu e como ateu devo ser enterrado. Em vez dum pano preto, ponham um paninho vermelho no caixote, se puderem. E usem luto vermelho, se algum quiserem usar...
Mesmo que eu ficasse pílulas ou sugestionável à hora da morte, isso não modificaria ser esta a minha opinião responsável. É esta, por conseguinte, a única válida.
Claro está que gostaria de ter sido melhor homem, melhor marido e melhor pai. A perspectiva da morte só tem de positivo fazer-nos pensar assim. Mas o homem é um bicho complicado. E eu tenho a consciência de que pelo menos, me bati sempre comigo mesmo para ser melhor do que poderia ter sido. Fui amigo da família à minha maneira: sem efusões líricas ou rodriguinhos. E, se não fiz mais por ela, foi porque não pude, tanto no sentido social como psicológico do verbo. A prova de que o meu desejo era ser bom marido e bom pai está no muito que li, pensei e escrevi sobre isso. Sejam os Filhos melhores do que eu pude — foi sempre esse o meu sentido de missão.
Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem — físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais.
Mas, que não as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!
Não veremos o que quisemos, mas quisemos o que vimos. E este querer é um imperativo histórico. Há milhões de mortos a dizer-vos: avante!
Para a Mulher, um abraço, simples e esquivo como eu sempre fui. Para os Filhos, um beijo, frio e recalcado como eu sempre lhes dei. Para todos, um afecto. Quem tinha tão pouco que dar a tantos, teve de ser avaro... Mas morre convencido de que não guardou nada para si. Ou de que teve, pelo menos, essa intenção.
Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!
Mário Sacramento
Amigo, companheiro e camarada Dr. Adelino Leitão.
ResponderEliminarGostei!
Não conhecia.
Mas mais gostei de te ver vivo e vivaço.
Podia e devia comentar mais o teu post sobre Dr. Mário Sacramento, todavia o tempo e o modo não mo permitem.
Mas há um pormenor que não posso deixar em claro. Aliás dois.
O primeiro liga-se à nossa formação cristã. Nada acaba com a morte física.
O segundo, contradição das contradições, “da terra vieste e à terra voltarás”.
E eu que sou adepto do crematório.
Por último, depois da poeira assentar, resta a família.
As vezes esquecemo-nos disso.
Abraço.
Em verdade digo que desconheço o trabalho de Mário Sacramento, mas pode ter a certeza que despertou em mim a curiosidade e decerto será um dos próximos autores que acompanhará as minhas leituras de cabeceira.
ResponderEliminarHá um trecho ali que me recorda uma música belissima do Chico Buarque, chamada "Funeral de um lavrador", por certo conhecida da Paula Sofia, que é fã confessa.
ResponderEliminarFica parte da letra, e se alguém quiser a música.. também se arranja! ;-)
Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
[...]
Que bem que se comenta aqui, porque Chico Buarque é realmente "dono" de músicas fantásticas.
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