III – De como um sacrifício individual se transformou num desafio colectivo
Quando a estecticista Rosa entrou na sede rosa, para entregar o terceiro fornecimento, encontrou Joelito extenuado, de tanto raspar. Meteu conversa.
- O senhor está muito cansado. Por que não descansa um pouco? Tem-se alimentado? E dormido?- Nem me diga nada, colega; não vejo o dia disto terminar…
- Por que não pede ajuda aos seus camaradas de partido?
- Tenho medo de os incomodar; eles podem ficar chateados – eles trabalham.
- Mas o senhor precisa de ajuda; uma pessoa, por muito serviçal que seja, não raspa catorze mil canetas de enfiada!
- Mas sabe: eu voluntariei-me…
- Pois; mas sabe qual é o maior problema desta casa?
- Não, diga lá.
- Muita caneta e pouca gente que saiba escrever.
- Não diga isso, colega; temos muita gente que sabe escrever.
- Não me percebeu ou eu não me expliquei bem. Saber escrever, sabem; não sabem é escrever o que deve ser escrito; sabe: para escrever o que deve ser escrito é preciso pensar, querer pensar, saber pensar.
- Não diga isso, colega.
- Digo-lhe mais: se o meu salão fosse gerido como gerem isto, há muito que já tinha fechado portas. Vou falar com a doutora…
E assim fez a resoluta estecticista.
No dia seguinte, apareceu uma ajuda, depois outra, e depois mais outra… Passados uns dias a sede estava cheia de raspadores de canetas e foi preciso montar um sistema de alertas de capacidade esgotada. É neste fadário, que roça o absurdo colectivo, que estas alminhas sem alma nem pensamento consomem o seu tempo e as suas fracas energias.
Joelito, el Raspador, um chico que tem mais alma de cântaro do que de político, é a figura maior destas cenas de tragédia cómica. Mas não é o culpado desta desgraça colectiva. Porque deixa de haver culpados onde erram todos.
Miguel Saavedra
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