Nasci numa aldeia onde o colectivo sempre importou. Muito antes de haver uma associação (com estatutos e corpos sociais e tudo o que Abril nos trouxe, no final dos anos 70), o povo já se encontrava para fazer coisas, fosse no largo da capela ou num barracão, numa casa em construção ou numa esquina qualquer. Nasci naquela parte da Moita do Boi que era pertença da freguesia da Mata Mourisca (mais tarde da Guia), mas tinha menos de um ano quando me mudei para esta rua que as fotografias vos mostram. Rua da Guarita, Rua do Campo de Futebol. Metade das casas ali construídas nos últimos 50 anos são da minha imensa família. Cresci ali, à beira de uma estrada de terra batida, onde esfolei os joelhos vezes sem conta, onde no inverno havia uma brincadeira divertida que era não pisar as poças, numa gincana até chegar à estrada principal - também ela ainda de terra batida - e depois à escola. Lembro-me bem do espanto de uma das minhas professoras da primária, que me fez pensar pela primeira vez no que era não ter alcatrão. Foi numa aula de Meio Físico e Social. De modo que me lembro bem do que fomos, enquanto povo, num país desigual. Uma das primeiras lutas do meu pai quando voltou à terra foi essa do alcatrão. Ele e uns amigos andavam de casa em casa, com "os homens da Junta", a convencer os pares a ceder uns centímetros de terra, para que a estrada pudesse servir também para os automóveis. Não foi há 100 anos, foi há menos de 40.
Ao mesmo tempo, o meu pai e esses amigos, e os homens mais velhos e os rapazes novos, erguiam a sede da Associação Desportiva Recreativa e Cultural da Moita do Boi (hoje também de promoção social). Nos tempos livres, organizam-se para os trabalhos de construção. No dia em que foi colocada a "primeira placa", juntaram-se para uma foto de grupo, que lá está, na parede do Bar da Associação, para que ninguém se esqueça de onde veio. E já se sabe, na Moita do Boi tudo começa e acaba na bola. A Associação nasceu a partir de uma equipa de futebol já formada - Os Corsários. Não é por isso de espantar a bravura com que tudo se faz. Só assim se explica que numa aldeia (que não só não é sede de freguesia como é dividida por duas - Guia e Louriçal), um clube que começa com uns rapazes a jogar à bola onde calhava, a troco de recreio, chegue onde está. Desconfio que muitos não sabem que a Moita do Boi milita hoje na Divisão de Honra da Associação de Futebol de Leiria, a mesma onde estão o GD Guiense e o Sporting de Pombal.
Desconfio que os autarcas também não sabem. Ou melhor, a memória selectiva só lhes permite lembrar desse feito em época de eleições, quando vão todos desfilar para o campo, nas bancadas, a ver o jogo e dar o seu apoio, a troco dos votos. Se não fosse assim, como é que se explica de forma racional o que está a acontecer neste primeiro trimestre de 2021? Como é que chegados a este tempo é possível fazer uma obra de tamanha vergonha, sem um único passeio? Como é que se arrancam manilhas e se atiram para as eiras e entradas das casas? Como é que se refaz uma rua e não se pensa no escoamento das águas pluviais?
Esta é a rua do campo de futebol. Mas é também a rua onde estão sediadas algumas empresas de obras particulares e públicas. Que liga a Moita do Boi a Santo António e ao Louriçal. Antes da pandemia, aquela rua era um corrupio, todos os dias (não apenas pelos atletas da equipa sénior e escalões de formação), à conta dos treinos, dos jogos, e da atividade económica. Passam ali camiões de grande porte - o que ajudou a rebentar o piso. Foi com entusiasmo que vi as máquinas chegarem. E foi com pesar que este fim de semana percebi o desleixo, a incúria, o desprezo com que ainda são tratados os cidadãos da aldeia onde eu nasci, onde moram os meus pais, os meus tios, os meus amigos de infância.
Porque o poder - seja ele qual for - continua a olhar para o povo com a mesma expressão de há 50 anos: para quem é, bacalhau basta. Basta, sim. Só que basta de nos comerem por parvos.
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